O filme "Crimes Ocultos" (em cartaz nos cinemas), de Daniel Espinosa, deveria ser visto por todos os alunos que escutam bobagens da boca de seus "professores de humanas" sobre o socialismo.
Antes, um reparo. Estou longe de achar que a sociedade de mercado seja um docinho de coco. Pelo contrário, concordo com o sociólogo americano Daniel Bell em seu primoroso "The Cultural Contradictions of Capitalism".
Nessa obra, Bell deixa claro como as virtudes que produziram o capitalismo -a saber, autorresponsabilidade, contenção do desejo imediato, poupança, dignidade pensada como fruto do trabalho pessoal- estão em crise por conta de toda uma geração mimada, narcisista e consumista que nasceu da própria riqueza capitalista.
Entretanto, a sociedade de mercado continua sendo a única forma conhecida de produção de riqueza social e de preservação da autonomia individual, ainda que não devamos ser os otimistas ingênuos que acham que o mercado "cura" tudo.
Tampouco a direita fascista, homofóbica, escrota, serve. É um lixo. Dito isso, vamos ao que interessa.
"Crimes Ocultos" é uma aula de história sobre a URSS, tão necessária contra as mentiras dos socialistas brasileiros. Na época, anos 1950, a esquerda já era mau caráter e já mentia sobre a URSS. Mas quero pontuar uma questão específica que aparece no filme.
"Crimes Ocultos" narra a história de um oficial da polícia política socialista, a versão comunista da Gestapo, que investiga um serial killer que matava crianças. O governo stalinista negava que existissem homicídios na URSS porque isso era coisa do mundo podre capitalista.
Sendo assim, os superiores do herói recusam a investigação sob a rubrica stalinista de que "não há crimes no paraíso", leia-se, no socialismo. Ao final, fica claro como um serial killer era quase "um detalhe menor" no absurdo que era o mundo socialista real.
Qual a questão específica que quero pontuar no filme? É a seguinte: a "versão oficial" que o policial é obrigado a aceitar ao final, para criar um departamento de homicídios na polícia, é que todo e qualquer homicídio na União Soviética seria fruto da contaminação do paraíso socialista pela política do mundo capitalista. Não fosse por essa contaminação, não haveria crimes no paraíso socialista.
Voltemos ao Brasil hoje. Não vou falar de política propriamente dita, vou falar da modinha que muitos psicanalistas e associados hoje em dia pregam por aí, a saber, que "a verdadeira clínica é a política".
Ou, o que é a mesma coisa, que a diagnóstica, a ciência que organiza os padrões etiológicos (causas) da psicopatologia, deve ser mudada para que aspectos políticos e sociais tenham espaço na determinação dos sintomas.
Sei que o negócio é complicado, mas, trocando em miúdos, é o seguinte: os sintomas seriam fruto da ordem social injusta do capitalismo. Se mudarmos essa ordem via uma política socialista, muitas doenças desapareceriam.
Ou seja, segundo esses neostalinistas (envergonhados de confessar seu amor bandido pela sociedade totalitária), com o socialismo não teríamos pânicos, impotências, depressões e quadros afins.
Gostaria de ver uma conversa entre Slavoj Zizek (o guru dos neostalinistas tupiniquins), grande representante desse lacanismo meia boca que põe a "culpa" da psicopatologia no capitalismo, e os superiores do policial em "Crimes Ocultos".
Dizer que homicídios são fruto da sociedade doente capitalista, sujando o paraíso socialista, é a mesma coisa que dizer que a verdadeira clínica é a política.
Stálin dizia que o capitalismo gera assassinos, a trupe neostalinista afirma que o capitalismo gera quadros clínicos que noutra ordem deixariam de existir.
Ou seja: a política socialista cura o mundo das psicopatologias capitalistas.
Num mundo em que essa trupe mandasse ("sem porcos capitalistas e indústrias farmacêuticas"), quando deprimidos e afins continuassem a aparecer, eles iriam por a culpa em traidores que mantinham sua vida "promíscua" com as desigualdades do capitalismo.
O problema da esquerda não é político, é de caráter.
08 de junho de 2015
Luiz Felipe Pondé é Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 2 de junho de 2015.
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