"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

ANOTAÇÕES DE UM ENCONTRO COM O GENERAL LEÔNIDAS


Dossiê Globo News com Leônidas Pires


O general Leônidas Pires Gonçalves morreu hoje, aos 94 anos de idade. Gravei com ele para o Dossiê Globonews uma entrevista que deu o que falar, porque o general, ministro do Exército do primeiro governo civil depois da ditadura, manifestou posições duras, para dizer o mínimo. Disse, por exemplo, que o Brasil não teve exilados - mas "fugitivos". E assim por diante.

(Tentei cumprir, ali, o papel de repórter: o de tentar levar ao público "diferentes visões do mundo" - sem exercer "patrulhagem ideológica" sobre o entrevistado. Nem sempre é fácil. Diante do general, fiz o que fiz diante de ex-guerrilheiros - per exemplo: perguntas. Ponto. Que outra coisa um repórter pode fazer?).

Um detalhe curioso: o general só aceitou dar entrevista depois da terceira tentativa. A princípio, relutou, disse que já tinha falado antes, mas insisti, apelei para a vaidade do possível entrevistado: disse que seria importante que ele contasse, com detalhes, o que aconteceu na noite em que o presidente eleito Tancredo Neves foi internado às pressas num hospital de Brasília, na véspera da posse. O general, como se sabe, se aproximou de uma roda de políticos que discutiam, no hospital, quem deveria tomar posse: se o vice-presidente José Sarney ou se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães.
 
Ainda no telefone, Leônidas contou que o debate entre os políticos se encerrou quando ele disse que não havia o que discutir: pela Constituição, Sarney deveria assumir. (tal interpretação não era unânime entre os políticos ali presentes. O senador Pedro Simon, por exemplo, achava que quem deveria assumir era Ulysses, na condição de presidente da Câmara. Se Tancredo não iria tomar posse, o vice também não poderia). Dali, o general ligaria para José Sarney, já de madrugada. Quando notou que Sarney relutava em assumir o posto, Leônidas cortou a conversa algo bruscamente. Disse ao relutante Sarney que já havia problemas demais a serem resolvidos. Pronunciou, então, a frase que Sarney, tempos depois, disse que iria usar como título de um livro de memórias até hoje não publicado: "Boa noite, Presidente".
 
Em suma: Leônidas terminou cedendo ao meu argumento de que valeria a pena gravar ali, em  2010, uma entrevista sobre os vinte anos do fim do regime militar.  Um dia antes da gravação, liguei para o general, para confirmar. Leônidas reagiu: "Você se esqueceu de que combinou com um milico! Se eu disse que é amanhã às cinco da tarde, vai ser amanhã às cinco da tarde!".

Depois, tivemos algumas conversas por telefone - e alguns encontros casuais, pelas ruas do Leblon.

Nem faz tanto tempo, encontrei com o general no corredor do shopping Vitrine do Leblon, na avenida Ataulfo de Paiva. O general morava perto dali. Era um final de manhã. Estava sozinho. Caminhava com uma firmeza surpreendente para um nonagenário. Conversou comigo, animado.
Fiz umas anotações assim que cheguei em casa. Dou uma checada agora: o encontro foi no dia cinco de junho de 2014 - há exatamente um ano, portanto.

Palavras textuais do general - numa conversa que, obviamente, não era uma entrevista:

"Tive o mesmo professor de Luís Carlos Prestes. E ele me disse: "Aquele foi o aluno mais brilhante que já tive". Eu digo que Prestes é o herói sem vitória. Tudo em que ele entrou deu errado".

"Veja Lula: lá no Rio Grande do Sul, se usa a palavra ladino - é mais do que sabido. É ladino!".

"E essa história do mensalão? Sempre houve compra de voto. Você acha que não houve compra de voto para a eleição de Fernando Henrique? Mas sempre foi pontual. A diferença é que, com o mensalão, foi sistemático".

"Falam da espionagem dos EUA. Todo mundo faz - inclusive a gente!".

"Sua virulência intelectual é igual à minha! Igual ! Igual !. E eu até brinquei na entrevista: disse que você tinha um laivozinho de esquerda..."

"Devo ter recebido uns 400 telefonemas por causa da entrevista. E sabe quantas vezes reprisaram? Umas cem. Você tem a estatística oficial?" (aqui, o general exagera no número de reprises da entrevista).

"Noventa e três anos - e com a memória de vinte anos atrás! E mais: três vezes por semana, vou para a Academia".

Aproveitei para perguntar se o Alto Comando indicava informalmente ao Presidente da República um nome de militar que deva ser promovido: "Não. Porque, ali, todo mundo quer. É tudo candidato! Fernando Collor me procurou em casa, depois de eleito. Queria saber se eu indicava um nome. Eu disse que não. Mas poderia citar três".

"Disse a um amigo que tinha encontrado com você num restaurante. Perguntaram se a gente tinha conversado. E eu: "Não, porque as meninas tomaram a cena!". Lembranças a elas!". (aqui, o general se refere a duas crianças que "participaram" de outro encontro casual com ele).

Por fim: faz três meses, voltei a ligar para o general. Propus a gravação de uma reportagem em que ele dialogaria com um ex-guerrilheiro. Poderia ser um diálogo importante: tanto tempo depois, personagens com visões radicalmente opostas poderiam debater, civilizadamente, os chamados "anos de chumbo".

O general disse que preferia não participar do programa, mas, ainda assim, perguntou quem seria o ex-guerrilheiro convidado para a reportagem. Pareceu-me levemente tentado a aceitar o convite. Eu disse a ele que poderia ser, quem sabe?, Cid Benjamin - um dos participantes do sequestro do embaixador americano. Citei na hora o nome de Cid Benjamin - com quem tinha feito, igualmente, uma entrevista para o Dossiê Globonews.

O general comentou: "Vou dizer uma coisa que você não sabe: ele foi prisioneiro meu" .Disse-me que tinha lembrança de ter visto a mãe de Cid e César Benjamin - bem jovens à época da guerrilha - preocupada com os filhos. "Eram meninos!".

O general aproveitou para fazer uma tese de inesperado teor psicanalítico: achava que os dois tinham entrado para a luta armada provavelmente porque eram filhos de pais separados. Tempos depois, comentei com o próprio Cid o que tinha ouvido do general Leônidas. Cid riu, divertido, com a investida psicanalítica do general.

Leônidas Pires disse que iria sondar amigos, para ver se algum toparia participar de um possível diálogo com um ex-guerrilheiro. 

Não voltamos a nos falar.

08 de junho de 2015
Geneton Moraes Neto é Jornalista. Autor de livros-reportagem como “Dossiê Brasília : os Segredos dos Presidentes” e “Dossiê Drummond”, Geneton Moraes Neto (Recife,1956) trabalha na TV Globo/Rio. Quando entrevista um personagem, faz, a si mesmo, a pergunta sugerida por um editor inglês: ”Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?”. É a fórmula ideal do jornalismo.

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