Não houve na história da República governo que merecesse tanto ser posto porta afora pelas instituições quanto esse alegadamente reeleito no dia 26 de outubro do ano passado. Percorreu de A a Z o dicionário das coisas que um governo não deve fazer, e mandou para longe das próprias vistas os limites morais a que se subordinam as pessoas e as instituições que merecem respeito.
A lista é longa e mostra que estamos sob um governo absolutamente capaz. De qualquer coisa. A corrupção foi transformada em política de Estado graças à consistente e já fartamente comprovada formação de quadrilhas. Quando os números do assalto à Petrobras chegaram às manchetes mundiais houve um estupor porque nunca se vira caso de corrupção com tantos dígitos. E eram apenas os primeiros esguichos do que viria com a operação Lava Jato que desvendaria a extensão do esquema a um vasto conjunto de obras públicas.
Há poucos dias, o governo precisou usar toda sua força de coerção para aprovar uma lei dizendo que crime de irresponsabilidade fiscal já cometido deixava de ser crime perante os estatutos jurídicos do país. E pouco mais tarde, novamente operou o balcão dos negócios para que fossem retiradas assinaturas em CPIs que investigariam financiamentos do BNDES.
Em países sérios, presidentes não podem mentir. No governo brasileiro, a mentira é sempre a forma de comunicação. A verdade jamais emerge numa entrevista. Ela só aparece mediante rigorosa investigação jornalística ou policial. O governo atrai os piores elementos dos partidos da base e os piores parceiros nacionais e internacionais com os quais faz negócios que traem o interesse brasileiro.
Seguindo a política do partido governante, sem audiência ao Congresso e à nação ali representada, deslanchou um programa de integração continental denominado “Pátria Grande”, confessadamente comunista, visando integrar moedas e identidades nacionais com os mais desastrados de nossos vizinhos. Dentro desse projeto, o Brasil participa da instalação de uma Escola de Defesa que outra coisa não é que uma versão bananeira do Pacto de Varsóvia. Se essas tratativas forem criteriosamente investigadas, não andaremos longe de um crime de alta traição. Pense num mal para o país e saiba: há um setor do governo ou de seu partido tratando disso.
É irrelevante ao tema deste artigo mencionar a falta de qualquer mérito nesse governo, porque no Brasil, governar mal é um direito de todos. Mas, convenhamos, não é à toa que o petismo é contra a meritocracia. Basta contemplar seu governo. Ele jogou o país numa enorme crise sem que houvesse qualquer outro motivo que não fosse a monumental incompetência nas áreas essenciais da administração.
Cobrar das instituições que deliberem sobre impeachment é uma imposição moral. Se elas o recusarem, que assumam as consequências. Simples como isso. O que não se pode fazer é um discurso de reprovação ao que foi feito no país e dizer que “não é caso de impeachment”. Santo Deus! O que mais é preciso? Por quanto mal ainda devemos esperar? Não nos constrange tal omissão? A presidente e seus líderes já não podem aparecer na rua pois são vaiados pelo povo, entregue aos azares que desabam sobre seu cotidiano. E as instituições, no conforto dos gabinetes, contemplam seus esféricos umbigos. É assim que queremos ficar?
Dizer que “não é caso de impeachment” é fornecer ao governo um fraudulento atestado de boa conduta. Essa é apenas uma das duas opiniões possíveis. E é a mais prejudicial ao interesse público, à moral nacional e ao respeito que devemos ter por nós mesmos.
Brasil, o filho pródigo caiu em si?
Quando decidi renovar meu velho blog, dando a ele o formato atual em www.puggina.org, escolhi duas frases para aparecerem intermitentemente na “testa” do site: “O bom liberal sabe que há princípios e valores que se deve conservar” e “O bom conservador deve ser um defensor das liberdades”.
Creio nisso e me vejo, como católico, identificado com as duas vertentes. A liberdade é um dom esplêndido, que Deus respeita como atributo de suas criaturas muito mais do que elas mesmas costumam respeitar. E as responsabilidades que obviamente advêm da liberdade recaem sobre os indivíduos, sobre as pessoas concretas e não sobre grupos sociais, coletivos ou sistemas como alguns querem fazer crer.
É aí que entram os valores que balizam as condutas individuais e, por extensão, a ordem social e os códigos. É socialmente importante saber conservar o que deve ser conservado e mudar o que deve ser mudado. O bom conservador rejeita a revolução, a ruptura da ordem, a substituição da política pela violência, reconhece o valor da tradição e aprecia a liberdade como espaço para realização digna dos indivíduos e dos povos.
Não é por outro motivo que o movimento revolucionário e os que com ele colaboram atacam vigorosamente uns e outros. Liberais e conservadores são identificados, corretamente, como os adversários a serem vencidos. Essa batalha se trava no mundo da cultura. Gramsci descobriu isso e fez escola. Seus discípulos brasileiros, ditos intelectuais orgânicos, em poucas décadas tomaram o sistema de ensino das mãos dos educadores cristãos, inclusive na maior parte das instituições confessionais.
Nos anos setenta, incorporaram-se a essa tarefa inúmeros novelistas, diretores e produtores de programas de televisão em canal aberto. Tratei deles em meu artigo anterior “Acabou! Acabou! ”
http://www.puggina.org/artigo/puggina/acabou-acabou/3234). Enquanto o comunismo era propagandeado como expressão sublime da bondade humana (!), coube àqueles profissionais a tarefa de destruir os valores da sociedade, em ação de lago espectro.
Assim, foram zombando do bem, exaltando o mal, pregando a libertinagem e depreciando tudo que merecesse respeito. Foi um longo e bem sucedido processo de destruição moral do qual a corrupção que hoje reprovamos é mero subproduto. A população de patifes, canalhas e sociopatas aumentou em proporções vertiginosas.
Houve um relaxamento até mesmo entre as consciências bem formadas. Gravíssima a omissão de quantos a isso deveriam resistir, nas famílias, nas escolas, nas igrejas e nas instituições! Devemos reconhecer, então: há muito mais culpados entre os omissos do que entre os efetivos agentes do processo de destruição dos valores.
As liberdades recuaram simultaneamente porque esse era o objetivo final do projeto de dominação cultural: estabelecer a hegemonia política, com o Estado avançando sobre as autonomias dos indivíduos, das famílias e da sociedade e das liberdades econômicas. Foi assim que assistimos, durante décadas, sucessivas derrotas dos conservadores e dos liberais, tão numerosos quanto acomodados.
Felizmente, a cada dia que passa, cresce o número de brasileiros conscientes das causas da desgraça que acometeu a sociedade brasileira. São as pesquisas que o indicam com clareza. Foi tamanha a lambança, tão generalizada a degradação moral, tão impertinentes os abusos do Estado, a cascavel, enfim, tanto agitou seu chocalho que acabou despertando as consciências de sua letargia. A nação dá claros sinais de estar refletindo sobre o que fez de si mesma.
08 de junho de 2015
Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor
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