Em “Muito Além do Jardim”, o ator britânico Peter Selles desempenha seu mais extraordinário papel, vivendo a estória de um personagem que passa toda a vida recluso a uma casa, cuidando de seu jardim; não tem existência social, nem política, sequer legal. Seu contato com o mundo se resume à TV, que assiste. Mais, tarde quando descoberto – em virtude da morte do patrão –, responde por meio de lugares-comuns e clichês que retirou da televisão. É, então, inadequadamente, confundido com um gênio. O filme é triste, embora se trate de uma comédia; o alheamento do protagonista é revelador da solidão e também da ignorância de um mundo que carece de inteligência.
Observando as imagens da presidente Dilma pedalando sua bicicleta ao redor do Palácio, foi inevitável lembrar de Peter Sellers em “Muito Além do Jardim”. A presidente parece igualmente só, isolada mesmo; sem identidade social e política. Está reclusa, não vai às ruas, mesmo a casamentos chiques não pode ir. Desistiu de aparecer na TV por conta do efeito de panelaços que sua imagem produz. Cercada por seguranças, resta-lhe pedalar sua bicicleta ao redor do Palácio, nos jardins da residência oficial.
Talvez, nem seja tanto assim o seu alheamento, mas a imagem tem força de uma revelação: Dilma sem ânimo para reagir, incapaz de enfrentar a plateia; pedalando a bike ilude-se na impressão de que faz o mundo rodar sob seus pés. Mas, na verdade, está só e imóvel. Como na poesia de Drummond, “a noite esfriou, o dia não veio (…) não veio a utopia e tudo acabou, e tudo fugiu e tudo mofou”. E a identidade política murchou, e as vacas tossiram, e tudo parece se resumir a essa defensiva prisão política que tem na bicicleta contida aos jardins o símbolo de movimentos apenas ilusoriamente amplos, mas limitados na verdade.
ANJOS DECAÍDOS
Não se trata de discutir o justo, o certo ou o errado da situação; se, em resumo, os governos do PT fizeram mais bem ou mais mal ao país. Política nunca é justa. E, ademais, anjos decaídos são anjos mas também decaídos; anjos decaídos e ponto! Feita de versões, a história é a versão que mais emplacou e aquela que constará nos livros. A menos que consiga provar o contrário, a versão corrente hoje é muito ruim para o PT, Dilma e Lula, que vivem o pior momento de suas histórias: a presidente está só; o partido, atabalhoado, busca em desespero a coerência perdida. Ambos vivem a vertigem de um ônibus desgovernado — até por isso a preferência pela bicicleta.
E Lula, é claro, tampouco está isento disso. Recentemente, revi o filme “Peões”, de Eduardo Coutinho. É ao mesmo tempo emocionante e triste: Lula faz parte da história do Brasil, irremediavelmente. E já o faria mesmo sem a presidência da República. No documentário, emerge do depoimento de seus ex-companheiros como herói, sábio, deus. Traduz a luta dos humildes e também suas esperanças. O filme é de 2004. Mas, é triste perceber que aquele Lula é, como tudo na vida, datado. Aquele tempo, obviamente, também. Tudo mudou e os sonhos, se é que se realizaram, se realizaram apenas parcialmente – ainda que sonhos parciais não possam ser desprezados. A inclusão, de fato promovida, será sustentada e sustentável?
PATRIMONIALISMO
A cultura política do país não mudou: o mesmo patrimonialismo, a mesma sanha de poder – que faz os anjos decaírem. Sem mudanças estruturais, o ajuste fiscal chegou “impávido que nem Muhammed Ali”, mas de modo algum “tranquilo e infalível como Bruce Lee”; é um remendo no pano roto que o PT só fez ampliar. Gostemos ou não, ao longo de mais de uma década, a direção do PT se rendeu aos “usos e costumes” da real politique. Muitos de seus quadros parecem ter feito tudo aquilo que um dia imaginaram que os adversários fizessem. Deu no que deu. Se é verdade que os adversários realmente faziam – e é plausível que o fizessem –, o mais condescendente comentário que se pode fazer a respeito do PT é que “malandro é malandro e mané é mané”. Não tem jeito de ficar bem na foto.
É doloroso porque nisso tudo tem muita sente séria que não meteu a mão nos estrume, que foi de boa-fé, que deu seus melhores anos. Uns ideologizados, outros nem tanto. Ambos militantes. Mas, a militância não basta. E hoje aquela parcela que não depende dos cofres públicos se afasta ou – alguns — resiste com argumentos frágeis buscando retornar as bombas caídas no seu quintal, para o quintal da oposição. Não parece ser um bom raciocínio apenas admitir que a oposição, no poder, também é assim. Admitindo que fizeram o mesmo, são réus confessos. Só isso.
26 de junho de 2015
Carlos Melo
Estadão
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