"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

BIPOLARIDADE UNIPOLAR



Doze anos de PT e sua tigrada no poder acabam ou nos submetendo, ou entorpecendo, ou embrutecendo. É tanto populismo rasteiro, tanta mentira, incompetência e roubalheira juntas que acabamos deixando de lado as sutilezas da boa retórica em nome do combate ao mal maior. Nesse processo, perdemos oportunidades de manter e reforçar o objetivo último pelo qual tantos de nós passam horas lendo, escrevendo e debatendo política: a busca pela verdade.
A verdade não é o fim da história, a soma de todas as partes ou um ponto fixo num mapa. É o resultado de um processo de afirmações e questionamentos entre pessoas de boa fé e idéias concebidas a partir do contato franco e destemido com a realidade. Quando o contexto é favorável, a verdade manifesta-se em toda sua complexidade e diversidade; entretanto, quando um grupo formado em torno de mentiras ocupa espaços sociais e chega ao poder, a verdade entricheira-se, simplifica-se em nome da clareza e da diferenciação contra a mentira que, por dominante, pretende-se passar por verdade.
O combate às mentiras, quando dominantes, não prima pela sutileza. É um embate duro, seco e, às vezes, maniqueísta. Como as frentes são muitas, os recursos e o tempo, escassos, não sobra muito tempo para o bom debate com pessoas de visões diferentes, mas imbuídas da mesma boa fé e intenção de falar e ouvir a verdade, ainda que ela não soe agradável.
Discussões assim precisam voltar a ocorrer no país, em nome de nossa sanidade mental e social. Um dia, o petismo será apeado do poder, e isso será apenas o início de um longo trabalho pela reconstrução da normalidade política, institucional e moral do país. Quanto antes as retomarmos, melhor preparados estaremos para esta árdua tarefa quando este momento chegar.
Esta longa introdução deve-se ao fato do autor do artigo objeto de minha análise ser um dos resistentes a combater o atual estado de coisas. Leandro Narloch e seus livros “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, “Guia Politicamente Incorreto da América Latina” e “Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo” contribuíram muito para incluir outras pautas e repertórios no debate político, num momento em que a hegemonia petista parecia ser quase um fato da natureza.
Esta semana, porém, Narloch derrapou feio em seu artigo “Bipolaridade Intelectual”, onde ele elenca situações que considera contraditórias, misturando alhos com bugalhos em nome de um pretenso distanciamento crítico que, quando olhado com mais calma, mostra apenas que boa parte das mentiras contadas pela esquerda encontra espaço, por caminhos sinuosos, até mesmo nos argumentos de quem pretende ser-lhe contraponto, levando-o a dizer que a “bipolaridade intelectual” encontra-se à direita e à esquerda mas, quando os exemplos são analisados, vemos que menção à direita é puro pedágio ideológico.
Vamos ao texto.

A bipolaridade intelectual é o distúrbio que mais ataca jornalistas, colunistas, sociólogos e palpiteiros tanto da esquerda quanto da direita. Num dia o camarada diz morrer por um princípio, no dia seguinte rejeita a ideia e ainda despreza quem a defende. Sua avaliação sobre o que é correto ou moral é imprevisível, varia conforme a pessoa ou o partido que praticou a ação. Eis alguns exemplos atualizados da bipolaridade intelectual:
Narloch demonstra ter um propósito ousado: apontar contradições principiológicas à esquerda e à direita, para concluir que ideologias, no Brasil, nada mais são que cortinas de fumaça utilizadas por pessoas e partidos para defender seus interesses. Espera-se desse prenúncio a demonstração de contradições graves, relevantes, que ajudem a colocar em xeque posicionamentos de governantes e oposicionistas.
Infelizmente, não é o que ele entrega, pelo menos quando as contradições estão à direita.
Terceirização de funcionários: “grande ameaça às conquistas dos trabalhadores”.
Terceirização de médicos cubanos: “grande conquista da medicina brasileira”.
Logo no primeiro exemplo, Leandro Narloch se vale do eufemismo “terceirização” para tornar equivalente a discussão do PL 4330 (que regulamenta a terceirização de mão de obra no país) com a nebulosa contratação de médicos cubanos feita pelo governo federal. Uma negociação obscura através de organismo internacional e cheia de condicionantes autoritárias para os contratados, como obrigação de passar as férias no país de origem, retenção de mais da metade do salário em benefício do governo de Cuba, além das intimidações e ameaças amiúde relatadas na imprensa àqueles que ousam questionar as regras do contrato ou dão indícios de que podem abandonar o programa e pedir asilo nos EUA.
A esquerda agradece por tamanha imoralidade, de caráter quase escravocrata, ser caracterizada como “terceirização”.
A contradição da esquerda, aqui, é muito maior e mais grave do que a apontada.
Ajuste fiscal de FHC: “fora tucanos neoliberais!”.
Ajuste fiscal de Dilma: “é preciso ter maturidade e entender a importância do equilíbrio das contas públicas”.
Mais uma contradição da turma da esquerda. Sem ressalvas a esta parte do texto.
Imprensa descobre que Fernando Gouveia, dono de um blog contra o PT, tem uma empresa que presta serviços ao governo de SP no valor de R$ 70 mil mensais:
– Eis um claro exemplo de conflito ético!
Imprensa descobre que Leonardo Sakamoto, dono de um blog a favor do PT, tem uma ONG que presta serviços à Secretaria de Direitos Humanos no valor de R$ 546 mil por ano:
– Eis um exemplo de uma pessoa ética!
Um dos assuntos da semana, também envolvendo a Reaçonaria. Novamente o autor, ao apontar uma contradição da esquerda, confunde seus leitores ao igualar prestação de serviços e convênios. No caso da empresa do Fernando Gouveia (@gravz , para os tuiteiros), ali de fato há um contrato de prestação de serviços, com objeto e resultados bem definidos. O serviço prestado é ideologicamente neutro, ou seja, deveria ser prestado independente do governo de plantão
Já no caso da ONG de Sakamoto, os recursos foram recebidos através de convênio, que é bem diferente de um contrato de prestação de serviços. Enquanto no contrato há prestação e contraprestação, no convênio o que há é conjugação de esforços em torno de objetivo comum, conforme definição consagrada na doutrina jurídica.
A ONG de Sakamoto foi agraciada, sem licitação, por comungar das mesmas idéias e valores do governo de plantão. A empresa de Fernando foi contratada, através de licitação, para prestar serviços de interesse do governo, que deveriam ser executados independente das idéias e valores do governante..
O fato de Fernando ser anti petista não guarda relação com o objeto do seu contrato; Sakamoto ser um notório esquerdista foi determinante para que sua ONG fosse considerada apta a “conjugar esforços” com o governo petista.
Para Narloch, são situações absolutamente comparáveis. O petismo, novamente, agradece o favor involuntário, pois a contradição é de outra natureza.
Blogueiro conservador, sobre armas: “Contra o estado-babá! O cidadão deve assumir a responsabilidade por suas ações”.
Blogueiro conservador, sobre maconha: “A favor do estado-babá! As pessoas não sabem o que fazem”.
Aqui temos a primeira praça de cobrança do pedágio ideológico. Narloch escolhe pagar através da “falácia do espantalho”.
Já vi frases muito próximas à citada por Narloch em textos conservadores sobre armas. Já a frase sobre maconha é fruto exclusivo da imaginação do autor. Não conheço ninguém, seja defensor ou não da descriminalização da maconha, que tenha dito tamanha bobagem no debate sobre o tema.
O que há, sim, é uma defesa clara, veemente e sem subterfúgios, por parte dos conservadores, da manutenção da ilicitude da maconha, seja para consumo, seja para comércio, não porque são adoradores da regulação estatal ou do “estado-babá”, como jocosamente menciona o autor, e sim porque entendem que este é um limite comportamental que não deve ser transposto para a legalidade.
Pode-se questionar a validade moral ou pragmática deste posicionamento, mas situá-lo no campo da apologia à tutela estatal é desonestidade intelectual pura e simples. A contradição apontada é apenas um espantalho para incluir os conservadores no texto. A realidade mostra que não há a contradição apontada.
Feminista, sobre aborto: “As mulheres têm direito de decidir interromper a gravidez”.
Feminista, sobre cesáreas: “As mulheres não têm direito de optar pela cesárea”.
A comparação entre aborto e cesárea já é, por si, imoral. Utilizá-la para apontar qualquer contradição que seja só serve para dar ao aborto um caráter de normalidade que ele só tem na mente de psicopatas.
O que o autor pretende apontar como contradição, na verdade é complemento. As feministas que defendem a atrocidade de que o aborto é um direito são as mesmas que querem impor regras as mais severas às mulheres que, em busca de conforto físico ou minimização de riscos, para si ou para seus filhos, optam pela cesárea.
A apologia do aborto e a condenação das cesáreas são fruto da mesma origem: uma raiva difusa e inconfessa do amor à vida e à plena fruição da maternidade pelas mulheres.
Apontar contradições nestes dois comportamentos é um jeito torto de dizer que abortar é um direito.
Novamente, a verdadeira contradição da esquerda aqui é de outra natureza. Da forma como foi apontada, é apenas mais um favor à agenda esquerdista.
Jean Wyllys, sobre casamento gay: “O estado não deve se meter na vida privada dos cidadãos”.
Jean Wyllys, sobre economia: “O estado deve se meter na vida privada dos cidadãos”.
Jean Wyllys é auto-explicável e irrelevante. Sua menção no artigo só mostra a pobreza da matéria-prima que o compõe.
Adolescentes ricos ateiam fogo em índio em Brasília: “prisão perpétua para esses playboys!”.
Adolescentes pobres ateiam fogo em traficante rival: “redução da maioridade penal é fascismo”.
No caso do índio de Brasília, que ocorreu em 1997, apenas um dos jovens era menor de idade. Utilizar um caso antigo e factualmente inconsistente, além de mitigar a contradição do discurso da esquerda nesse tema, ainda dá uma piscadela para o discurso de luta de classes. Uma comparação mais atual e exata seria entre a posição da esquerda em relação à redução da maioridade penal “versus” a posição em relação à criminalização da homofobia.
Pobreza na África: “a culpa é do comércio internacional, principalmente com os Estados Unidos”.
Pobreza em Cuba: “a culpa é da proibição do comércio com os Estados Unidos”.
Mais uma contradição do discurso de esquerda conta a qual não há ressalvas.
Independência da Palestina: “é preciso respeitar o princípio da autodeterminação dos povos”.
Independência das Falklands: “As Malvinas sempre foram argentinas”.
Alguém discute a independência das Falklands? Por que esse tópico está aqui? Era para ser uma contradição da direita?
Mesmo num texto quase todo errado, esta última comparação soa estranha em demasia.
Vemos, portanto, que Leandro Narloch logra êxito em seus objetivos, ainda que parcialmente, quando as contradições apontadas são “de esquerda”. E por que a menção de contradições “tanto à esquerda quanto à direita”, logo no início do texto, se no campo da direita os exemplos e argumentos são tão inconsistentes? Não ouso especular as motivações, principalmente porque não considero o autor um picareta, ao contrário.
Apenas resolvi apontar esta modalidade sutil de isentismo para dizer (inclusive para mim mesmo) que este é um vício de pensamento que, de tanto ser-nos exposto como algo bom, pode ser cometido por qualquer um de nós.

26 de junho de 2015
in penso estranho

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