‘A calma dos dias’, livro de Rodrigo Naves, mistura ensaios sobre a cena contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — com pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas
Rodrigo Naves, ficcionista e crítico de artes plásticas, se perdeu ao andar de carro pela cidade de Santos. Buscou placas que o orientassem na barulhenta algaravia de seres, coisas e fumaça. Topou com uma que dizia: Lar das Moças Cegas. “Um retiro de paz e silêncio pousou sobre a tarde agitada”, escreveu ele a respeito da visão. As palavras obsoletas, o mundo de noite e calma ao qual a placa remetia, o tiraram de súbito do presente da cidade vibrante e confusa. Lares não há mais. Moças tampouco. E os cegos tornaram-se há tempos deficientes visuais.
O Lar das Moças Cegas não lhe inspirou pena. Imaginou que moravam ali jovens operosas. Elas recolheriam apostas na lotérica à direita da fachada. Organizariam as terapias ocupacionais anunciadas numa faixa de pano. Empenhadas no bem-estar de seus semelhantes, as ceguinhas viviam do seu trabalho. Nas horas de folga talvez conversassem, costurassem, ouvissem música. “Com a delicadeza de quem precisou aguçar os sentidos, cuidavam para não invadir territórios alheios”, prossegue Naves em “A calma dos dias”, que a Companhia dos Livros acaba de publicar.
O Lar existe, e a descrição no livro lhe é fiel. Quanto ao que se passa com as moças, é tudo imaginação de Naves, “devaneios, momentos em que a continuidade dos dias e dos hábitos se interrompe”. Perdidaço no presente nacional, Naves capta poesia densa, ainda que numa vírgula do cotidiano; deixa-se encantar pelas evocações; imagina dignidade num mundo obscuro. Não é pouco.
E é só o começo. As moças cegas o ajudam a pensar dimensões incômodas da vida contemporânea. O Lar delas é contraposto à transparência da Casa dos Artistas, do Big Brother Brasil e de tantas residências “que fazem a delícia do público televisivo mundial”. Nessas casas, nota o escritor, como tudo é devassado, os seus moradores são reduzidos a corpos, a bíceps e glúteos. E o que os corpos fazem o tempo todo é se tatearem, diminuir a distância que os separa. O excesso de tato com que as santistas anônimas compensam a cegueira corresponde ao tato excessivo dos devassados nos BBB.
Naves desdenha a explicação corriqueira para as intimidades hiperexpostas: busca de erotismo e índices de audiência. Nas casas de boneca da TV o mundo se torna doméstico e apreensível, ele diz, e quanto mais complexa a vida contemporânea, mais agradáveis se tornam as explicações caseiras. O fenômeno não se restringe à indústria cultural. Ele começou na cultura dita superior. A arquitetura pós-moderna recuperou a fachada, transformando edifícios em casinhas. As instalações imperam nas artes plásticas, e a maior parte delas não passa de ninhos. O romance, arte que buscava a vida social, foi atropelado por biografias que trombeteiam a intimidade de indivíduos tidos por excepcionais. A alta costura é vista como grande arte, o que domestica a criação artística para torná-la ponta de lança da indústria da moda.
“A calma dos dias” mistura ensaios sobre a cena contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — com pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas. Nuns textos sobressai o ensaísta de “A forma difícil”, livro que consolidou a sua reputação de grande crítico. Noutros, brilha o ficcionista de “O filantropo”, um escafandrista das fissuras do cotidiano.
Em “A calma dos dias”, o crítico e o ficcionista estão banhados pelo sol negro da melancolia. As artes plásticas sucumbem ao mercado e ao dinheiro, quando não à teorização que oblitera obras e homens. A arte se torna tão rarefeita que o crítico perde o objeto, deixa de ter o que analisar. Já a vida passa cada vez mais rápido. Os achaques se sucedem. O álcool, as drogas, o estudo, o sexo, a amizade, a política, talvez até mesmo o amor, deixam de ter aquele gosto.
O mundo objetivo e a existência subjetiva, como se sabe, se confundem. Difícil é saber quando falta vento social para mover o moinho da arte. Ou então se não há mais obras e indivíduos que captem a mudança de vento. A metáfora do vento e do moinho é de Van Gogh, e serviu de título para o livro anterior de Naves. Em “A calma dos dias”, ela reaparece: “temo ser hoje quase inaudível o rumor que moveu tantos engenhos”. Continua a faltar algo, mas é preciso fazer alo, nem que seja arrumar a mesa.
“Há horas de lutar e horas de se entregar”, dizia Mira Schendel aos amigos pouco antes de morrer. “Ouvi várias vezes essa frase no último mês, e confesso que sem a menor cumplicidade e, talvez, sem a menor compreensão do sentido da decisão de Mira”, relata Naves no livro. O seu livro, obra de um inconformista conformado, é sobre isso: luta e entrega na calma dos dias de moinhos imóveis.
Rodrigo Naves, ficcionista e crítico de artes plásticas, se perdeu ao andar de carro pela cidade de Santos. Buscou placas que o orientassem na barulhenta algaravia de seres, coisas e fumaça. Topou com uma que dizia: Lar das Moças Cegas. “Um retiro de paz e silêncio pousou sobre a tarde agitada”, escreveu ele a respeito da visão. As palavras obsoletas, o mundo de noite e calma ao qual a placa remetia, o tiraram de súbito do presente da cidade vibrante e confusa. Lares não há mais. Moças tampouco. E os cegos tornaram-se há tempos deficientes visuais.
O Lar das Moças Cegas não lhe inspirou pena. Imaginou que moravam ali jovens operosas. Elas recolheriam apostas na lotérica à direita da fachada. Organizariam as terapias ocupacionais anunciadas numa faixa de pano. Empenhadas no bem-estar de seus semelhantes, as ceguinhas viviam do seu trabalho. Nas horas de folga talvez conversassem, costurassem, ouvissem música. “Com a delicadeza de quem precisou aguçar os sentidos, cuidavam para não invadir territórios alheios”, prossegue Naves em “A calma dos dias”, que a Companhia dos Livros acaba de publicar.
O Lar existe, e a descrição no livro lhe é fiel. Quanto ao que se passa com as moças, é tudo imaginação de Naves, “devaneios, momentos em que a continuidade dos dias e dos hábitos se interrompe”. Perdidaço no presente nacional, Naves capta poesia densa, ainda que numa vírgula do cotidiano; deixa-se encantar pelas evocações; imagina dignidade num mundo obscuro. Não é pouco.
E é só o começo. As moças cegas o ajudam a pensar dimensões incômodas da vida contemporânea. O Lar delas é contraposto à transparência da Casa dos Artistas, do Big Brother Brasil e de tantas residências “que fazem a delícia do público televisivo mundial”. Nessas casas, nota o escritor, como tudo é devassado, os seus moradores são reduzidos a corpos, a bíceps e glúteos. E o que os corpos fazem o tempo todo é se tatearem, diminuir a distância que os separa. O excesso de tato com que as santistas anônimas compensam a cegueira corresponde ao tato excessivo dos devassados nos BBB.
Naves desdenha a explicação corriqueira para as intimidades hiperexpostas: busca de erotismo e índices de audiência. Nas casas de boneca da TV o mundo se torna doméstico e apreensível, ele diz, e quanto mais complexa a vida contemporânea, mais agradáveis se tornam as explicações caseiras. O fenômeno não se restringe à indústria cultural. Ele começou na cultura dita superior. A arquitetura pós-moderna recuperou a fachada, transformando edifícios em casinhas. As instalações imperam nas artes plásticas, e a maior parte delas não passa de ninhos. O romance, arte que buscava a vida social, foi atropelado por biografias que trombeteiam a intimidade de indivíduos tidos por excepcionais. A alta costura é vista como grande arte, o que domestica a criação artística para torná-la ponta de lança da indústria da moda.
“A calma dos dias” mistura ensaios sobre a cena contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — com pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas. Nuns textos sobressai o ensaísta de “A forma difícil”, livro que consolidou a sua reputação de grande crítico. Noutros, brilha o ficcionista de “O filantropo”, um escafandrista das fissuras do cotidiano.
Em “A calma dos dias”, o crítico e o ficcionista estão banhados pelo sol negro da melancolia. As artes plásticas sucumbem ao mercado e ao dinheiro, quando não à teorização que oblitera obras e homens. A arte se torna tão rarefeita que o crítico perde o objeto, deixa de ter o que analisar. Já a vida passa cada vez mais rápido. Os achaques se sucedem. O álcool, as drogas, o estudo, o sexo, a amizade, a política, talvez até mesmo o amor, deixam de ter aquele gosto.
O mundo objetivo e a existência subjetiva, como se sabe, se confundem. Difícil é saber quando falta vento social para mover o moinho da arte. Ou então se não há mais obras e indivíduos que captem a mudança de vento. A metáfora do vento e do moinho é de Van Gogh, e serviu de título para o livro anterior de Naves. Em “A calma dos dias”, ela reaparece: “temo ser hoje quase inaudível o rumor que moveu tantos engenhos”. Continua a faltar algo, mas é preciso fazer alo, nem que seja arrumar a mesa.
“Há horas de lutar e horas de se entregar”, dizia Mira Schendel aos amigos pouco antes de morrer. “Ouvi várias vezes essa frase no último mês, e confesso que sem a menor cumplicidade e, talvez, sem a menor compreensão do sentido da decisão de Mira”, relata Naves no livro. O seu livro, obra de um inconformista conformado, é sobre isso: luta e entrega na calma dos dias de moinhos imóveis.
06 de março de 2014
Mario Sérgio Conti, O Globo
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