Me escreve André Bastos Gurgel: “às vezes dá vontade de ir embora deste país. Afinal, Janer, se você pôde viver em Paris, Madri e Estocolmo, por que decidiu voltar para esta terra de apedeutas, comunistas, fanáticos, et caterva?"
Em primeiro lugar, André, havia uma mulher que me chamava poderosamente no Brasil. Ela valia mais, para mim, que a Europa toda. Há quem troque uma pessoa querida por um país. Eu não troco.
Em segundo, os suecos me queriam para trabalho de imigrante, o que meu orgulho me impedia. Não lavo pratos nem em minha casa, não iria lavar pratos para o Primeiro Mundo. Disputei uma vaga como jornalista na Sveriges Radio. Tinha dois cursos universitários, dois anos de trabalho em jornal. A vaga é minha, pensei.
Não era. Eu não era de esquerda. Se não conseguia trabalhar em profissão decente, melhor voltar. Considero que ganhar pouco no Brasil em um trabalho compatível com as próprias capacidades é bem melhor - e mais digno - do que fazer tarefa de imigrante no estrangeiro, mesmo ganhando mais. Há quem prefira ganhar mais. Não é meu caso.
Em terceiro, em país estrangeiro, você será sempre um cidadão de segunda categoria, ainda que viva melhor que no Brasil. Sempre que criticar o país – e críticas, você sempre as terá – poderá ouvir de bate-pronto: por que então você não volta para seu país?
É possível a um brasileiro ser sueco, alemão ou francês. Se for novinho para lá, diria que sim. Se for adulto, jamais deixará de ser brasileiro.
Em Lidingö, ilha chique de Estocolmo, conheci dois negrinhos brasileiros, que haviam feito uma ponta em Orfeu Negro, filme de 1959, de Marcel Camus. Eram o que hoje chamaríamos de meninos de rua e o cineasta, sem querer, salvou-os da miséria e da violência. Um casal sueco viu o filme, se comoveu com os meninos e os adotou.
Encontrei-os em 71, já com quase 20 anos, cosmopolitas e poliglotas, falando sueco, inglês e português com aisance, jogando tênis e esquiando. Lembro que um deles cursava economia. O outro, vim reencontrar mais tarde, como alto funcionário da SAS no Rio de Janeiro. Eram suecos da gema. O que aliás comprova que inteligência e cultura não são fatores raciais, mas questão de educação. Ficassem no Rio, seriam talvez soldados do tráfico.
Em quarto, o preço do metro quadrado nas capitais européias. Para ter um apartamento lá, eu teria de diminuir em pelo menos um terço meu espaço vital. Em Paris, nem pensar. Disponho hoje, em um bairro nobre de São Paulo, de um apartamento de 120 m2. Com o valor dele, talvez conseguisse comprar um studio de 30 m2, onde nem caberia minha biblioteca. Mais ainda, ficaria prisioneiro de Paris, pois dificilmente me sobraria dinheiro para viajar. Melhor então ficar aqui e, a cada ano, viajar para Paris ou para onde quiser.
Em quinto, apesar dos pesares, no Brasil dá para viver. Não é nenhuma Uganda ou Somália. O Brasil não é apenas uma terra de apedeutas, comunistas e fanáticos. Há muita gente honesta e inteligente no país.
O Brasil funciona. Não há escassez de bens, nem mesmo de papel higiênico, como costumava ocorrer nos países socialistas, e ainda ocorre nas Cubas e Venezuelas da vida. Você vai a um restaurante, a uma loja, a um shopping, a um supermercado, e tudo funciona. O que não funciona é o governo. O Brasil é um país que avança, apesar dos governos que teve e tem.
Nos anos 70, até refil de caneta-tinteiro eu precisava encomendar da Europa. Telefone, até bem pouco tempo, no Brasil era privilégio de quem tinha dinheiro. Em 90, quando cheguei a São Paulo, paguei 4 mil dólares – em verdinhas mesmo – por um telefone. Em 77, paguei 300 francos em Paris. Quando pedi o telefone, imaginei que teria de esperar quatro ou cinco anos, como ocorria no Brasil. Eu o recebi em três dias. Hoje, não há doméstica no país que não tenha seu celular.
Temos hoje entre nós praticamente tudo que nos faltava e só encontrávamos na Europa. Com a Internet, a própria imprensa européia nos chega em menos de segundo. Foi-se o tempo em que só podíamos ler um jornal europeu nas capitais, e isso três ou quatro dias depois de editado. Faltam, é claro, as cidades milenares, os cafés centenários, aquelas ruas de cujas paredes pingam história. Mas sempre se pode visitá-las.
Em meus dias de Filosofia, tive aulas por quatro anos com Gerd Bornheim, intelectual bastante conhecido no Rio Grande do Sul nos anos 60. Foi cassado pelos militares em 69. Em 71, em minha primeira visita a Paris, hospedei-me no Grand Hotel Saint Michel, na rue Cujas, ao lado da Sorbonne. De Grand o Saint Michel nada tinha, era apenas um une étoile muito freqüentado por brasileiros, e gerido pela folclórica Madame Salvage.
Certo dia, ao voltar de madrugada, quando fui pegar a chave, ergue-se de um catre uma calva ilustre e familiar. Era o Gerd, que trabalhava como porteiro da noite. Convidou-me para uma janta no dia seguinte. Fomos no Zero de Conduite, a duas quadras do hotel. O restaurante fazia homenagem ao filme homônimo de Jean Vigo. Foi lá que conheci esse delicioso queijo grego, o fetá. Hoje, o Zero não existe mais.
Voltando ao Gerd: havia sido cassado, mas não fora condenado a nada. Podia muito bem trabalhar em universidades privadas. Preferiu ser imigrante em Paris. É uma opção. Quanto a mim, não servia. Não fiz universidade para lavar pratos ou algo semelhante.
Verdade que um lavador de pratos pode ganhar até mais que professor universitário no Brasil. Em Estocolmo, conheci um gaúcho – de família abastada e renomada no Rio Grande do Sul, os Eberle – que se prestava a tais trabalhos durante três meses na Suécia e, com o ganho, se espichava o resto do ano em Ibiza. Muita gente deve ter passado boa parte da vida, senão a vida toda, nesse ritmo. De repente, olham para trás e a vida passou. Não me serve.
Sem falar no desconforto provocado pela imigração árabe e africana. As cidades, que eram pacíficas e aprazíveis, se tornaram perigosas. Quando morei na Suécia, nem tinha noção do que era um imigrante. Fui conhecê-los lá. No total, vivi seis anos no continente, em Estocolmo, Paris e Madri. Nas duas primeiras cidades, eu passeava nas madrugadas com a tranquilidade de quem perambulava na noite em Dom Pedrito.
Em Madri já foi um pouco diferente. Cheguei lá em 87 e já não era muito saudável flanar pela Gran Via tarde da noite. Lá, a Baixinha foi brutalmente assaltada por árabes, na centralíssima Calle de Etchegaray, a las cinco en punto de la tarde.
Há mais de dez anos, comentei manchete que me surpreendeu no Aftonbladet: Stockholmarnas farligaste gator
Ou seja, as ruas mais perigosas de Estocolmo. Ora, quando vivi lá, em 71/72, não havia uma única rua perigosa na cidade. Eu vagava de ilha em ilha, nas noites brancas dos hiperbóreos, sem sensação alguma de perigo. Há alguns anos, o mesmo Aftonbladet listava mais de cem ruas perigosas. Que ocorrera de lá para cá? A invasão muçulmana.
O mesmo diga-se de Paris. Eu morava no 13º e tive uma namorada no 16º. Nas madrugadas, voltava a pé para casa, cortando a cidade em diagonal, sem sensação alguma de perigo. Dava quase duas horas de passeio noite adentro. Hoje, não ousaria fazer o mesmo.
Paris, desde 2005, tem encontro marcado com o vandalismo a cada réveillon. São centenas de carros queimados, sob o olhar impotente da polícia. Em 2011, o alvo dos vândalos foi Londres. Ano passado, foi a hora e vez de Estocolmo. Já faz quatro dias que bairros periféricos da cidade ardem em chamas, quando grupos de “jovens”, como dizem os jornais, saem às ruas para botar fogo em containers, carros, quebrar vitrines e enfrentar a polícia a pedradas. A Europa não é mais o que foi. Em breve será a vez de Viena, Madri, Roma, Bruxelas. Nos próximos anos, a epidemia fará parte da normalidade do continente. Quem viver, verá.
Por esta e por outras, parece-me melhor ficar por aqui. Sem falar que, nestes dias crepusculares, meu pequeno círculo de amigos está aqui.
12 de outubro de 2013
janer cristaldo
Em primeiro lugar, André, havia uma mulher que me chamava poderosamente no Brasil. Ela valia mais, para mim, que a Europa toda. Há quem troque uma pessoa querida por um país. Eu não troco.
Em segundo, os suecos me queriam para trabalho de imigrante, o que meu orgulho me impedia. Não lavo pratos nem em minha casa, não iria lavar pratos para o Primeiro Mundo. Disputei uma vaga como jornalista na Sveriges Radio. Tinha dois cursos universitários, dois anos de trabalho em jornal. A vaga é minha, pensei.
Não era. Eu não era de esquerda. Se não conseguia trabalhar em profissão decente, melhor voltar. Considero que ganhar pouco no Brasil em um trabalho compatível com as próprias capacidades é bem melhor - e mais digno - do que fazer tarefa de imigrante no estrangeiro, mesmo ganhando mais. Há quem prefira ganhar mais. Não é meu caso.
Em terceiro, em país estrangeiro, você será sempre um cidadão de segunda categoria, ainda que viva melhor que no Brasil. Sempre que criticar o país – e críticas, você sempre as terá – poderá ouvir de bate-pronto: por que então você não volta para seu país?
É possível a um brasileiro ser sueco, alemão ou francês. Se for novinho para lá, diria que sim. Se for adulto, jamais deixará de ser brasileiro.
Em Lidingö, ilha chique de Estocolmo, conheci dois negrinhos brasileiros, que haviam feito uma ponta em Orfeu Negro, filme de 1959, de Marcel Camus. Eram o que hoje chamaríamos de meninos de rua e o cineasta, sem querer, salvou-os da miséria e da violência. Um casal sueco viu o filme, se comoveu com os meninos e os adotou.
Encontrei-os em 71, já com quase 20 anos, cosmopolitas e poliglotas, falando sueco, inglês e português com aisance, jogando tênis e esquiando. Lembro que um deles cursava economia. O outro, vim reencontrar mais tarde, como alto funcionário da SAS no Rio de Janeiro. Eram suecos da gema. O que aliás comprova que inteligência e cultura não são fatores raciais, mas questão de educação. Ficassem no Rio, seriam talvez soldados do tráfico.
Em quarto, o preço do metro quadrado nas capitais européias. Para ter um apartamento lá, eu teria de diminuir em pelo menos um terço meu espaço vital. Em Paris, nem pensar. Disponho hoje, em um bairro nobre de São Paulo, de um apartamento de 120 m2. Com o valor dele, talvez conseguisse comprar um studio de 30 m2, onde nem caberia minha biblioteca. Mais ainda, ficaria prisioneiro de Paris, pois dificilmente me sobraria dinheiro para viajar. Melhor então ficar aqui e, a cada ano, viajar para Paris ou para onde quiser.
Em quinto, apesar dos pesares, no Brasil dá para viver. Não é nenhuma Uganda ou Somália. O Brasil não é apenas uma terra de apedeutas, comunistas e fanáticos. Há muita gente honesta e inteligente no país.
O Brasil funciona. Não há escassez de bens, nem mesmo de papel higiênico, como costumava ocorrer nos países socialistas, e ainda ocorre nas Cubas e Venezuelas da vida. Você vai a um restaurante, a uma loja, a um shopping, a um supermercado, e tudo funciona. O que não funciona é o governo. O Brasil é um país que avança, apesar dos governos que teve e tem.
Nos anos 70, até refil de caneta-tinteiro eu precisava encomendar da Europa. Telefone, até bem pouco tempo, no Brasil era privilégio de quem tinha dinheiro. Em 90, quando cheguei a São Paulo, paguei 4 mil dólares – em verdinhas mesmo – por um telefone. Em 77, paguei 300 francos em Paris. Quando pedi o telefone, imaginei que teria de esperar quatro ou cinco anos, como ocorria no Brasil. Eu o recebi em três dias. Hoje, não há doméstica no país que não tenha seu celular.
Temos hoje entre nós praticamente tudo que nos faltava e só encontrávamos na Europa. Com a Internet, a própria imprensa européia nos chega em menos de segundo. Foi-se o tempo em que só podíamos ler um jornal europeu nas capitais, e isso três ou quatro dias depois de editado. Faltam, é claro, as cidades milenares, os cafés centenários, aquelas ruas de cujas paredes pingam história. Mas sempre se pode visitá-las.
Em meus dias de Filosofia, tive aulas por quatro anos com Gerd Bornheim, intelectual bastante conhecido no Rio Grande do Sul nos anos 60. Foi cassado pelos militares em 69. Em 71, em minha primeira visita a Paris, hospedei-me no Grand Hotel Saint Michel, na rue Cujas, ao lado da Sorbonne. De Grand o Saint Michel nada tinha, era apenas um une étoile muito freqüentado por brasileiros, e gerido pela folclórica Madame Salvage.
Certo dia, ao voltar de madrugada, quando fui pegar a chave, ergue-se de um catre uma calva ilustre e familiar. Era o Gerd, que trabalhava como porteiro da noite. Convidou-me para uma janta no dia seguinte. Fomos no Zero de Conduite, a duas quadras do hotel. O restaurante fazia homenagem ao filme homônimo de Jean Vigo. Foi lá que conheci esse delicioso queijo grego, o fetá. Hoje, o Zero não existe mais.
Voltando ao Gerd: havia sido cassado, mas não fora condenado a nada. Podia muito bem trabalhar em universidades privadas. Preferiu ser imigrante em Paris. É uma opção. Quanto a mim, não servia. Não fiz universidade para lavar pratos ou algo semelhante.
Verdade que um lavador de pratos pode ganhar até mais que professor universitário no Brasil. Em Estocolmo, conheci um gaúcho – de família abastada e renomada no Rio Grande do Sul, os Eberle – que se prestava a tais trabalhos durante três meses na Suécia e, com o ganho, se espichava o resto do ano em Ibiza. Muita gente deve ter passado boa parte da vida, senão a vida toda, nesse ritmo. De repente, olham para trás e a vida passou. Não me serve.
Sem falar no desconforto provocado pela imigração árabe e africana. As cidades, que eram pacíficas e aprazíveis, se tornaram perigosas. Quando morei na Suécia, nem tinha noção do que era um imigrante. Fui conhecê-los lá. No total, vivi seis anos no continente, em Estocolmo, Paris e Madri. Nas duas primeiras cidades, eu passeava nas madrugadas com a tranquilidade de quem perambulava na noite em Dom Pedrito.
Em Madri já foi um pouco diferente. Cheguei lá em 87 e já não era muito saudável flanar pela Gran Via tarde da noite. Lá, a Baixinha foi brutalmente assaltada por árabes, na centralíssima Calle de Etchegaray, a las cinco en punto de la tarde.
Há mais de dez anos, comentei manchete que me surpreendeu no Aftonbladet: Stockholmarnas farligaste gator
Ou seja, as ruas mais perigosas de Estocolmo. Ora, quando vivi lá, em 71/72, não havia uma única rua perigosa na cidade. Eu vagava de ilha em ilha, nas noites brancas dos hiperbóreos, sem sensação alguma de perigo. Há alguns anos, o mesmo Aftonbladet listava mais de cem ruas perigosas. Que ocorrera de lá para cá? A invasão muçulmana.
O mesmo diga-se de Paris. Eu morava no 13º e tive uma namorada no 16º. Nas madrugadas, voltava a pé para casa, cortando a cidade em diagonal, sem sensação alguma de perigo. Dava quase duas horas de passeio noite adentro. Hoje, não ousaria fazer o mesmo.
Paris, desde 2005, tem encontro marcado com o vandalismo a cada réveillon. São centenas de carros queimados, sob o olhar impotente da polícia. Em 2011, o alvo dos vândalos foi Londres. Ano passado, foi a hora e vez de Estocolmo. Já faz quatro dias que bairros periféricos da cidade ardem em chamas, quando grupos de “jovens”, como dizem os jornais, saem às ruas para botar fogo em containers, carros, quebrar vitrines e enfrentar a polícia a pedradas. A Europa não é mais o que foi. Em breve será a vez de Viena, Madri, Roma, Bruxelas. Nos próximos anos, a epidemia fará parte da normalidade do continente. Quem viver, verá.
Por esta e por outras, parece-me melhor ficar por aqui. Sem falar que, nestes dias crepusculares, meu pequeno círculo de amigos está aqui.
12 de outubro de 2013
janer cristaldo
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