Depois de oito anos na Câmara dos Deputados, parlamentar mais votada do Rio Grande do Sul desiste de concorrer à reeleição. Ela voltará a Porto Alegre
Voz suave, ela cita Carlos Drummond de Andrade para dar indícios dos motivos de sua despedida. No ombro, estampa uma tatuagem nova, feita em março, inspirada na música "O quereres", de Caetano Veloso, com a frase: "Ah, bruta flor do querer". Aos 32 anos, oito depois de chegar à Câmara dos Deputados para seu primeiro mandato - nas duas eleições, foi a parlamentar mais votada da história de seu estado, o Rio Grande do Sul -, Manuela D’Ávila (PCdoB) se retira ano que vem da trincheira nacional. Volta a Porto Alegre, onde perdeu no ano passado a eleição para a prefeitura, para tentar cadeira na Assembleia Legislativa. É na capital gaúcha que mora seu marido, o músico gaúcho Duca Leindecker, 43 anos. É lá que Manuela desfruta sua paixão desmedida pelo Inter.
Ela diz que cumpriu seu ciclo, que os protestos mexeram com seu desejo de ouvir de perto o grito das ruas e que não há desencanto, mas uma percepção bem explícita: existe uma limitação clara à aprovação da reforma política, para ela essencial ao combate à corrupção. Uma de suas frustrações: o projeto que autoriza a publicação de biografias de pessoas públicas sem a autorização do biografado ou de familiares está emperrado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Em entrevista por telefone, de Porto Alegre, Manuela, que ocupou a presidência da Comissão de Direitos Humanos em 2011 e viu assumir em seu lugar o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), cita a frase do poema "Nosso tempo", de Drummond, para explicar o que a move hoje: "Eu não sou as coisas e me revolto".
O que moveu sua decisão de não se candidatar mais à Câmara dos Deputados?
Encerrei um ciclo. É isso que faz com que eu queira voltar para o meu estado. Acho que passei por várias fases. Talvez tenha tido momentos de frustração, por projetos não terem andado tão rapidamente. Uma das frustrações é o projeto das biografias, que está parado. Ele autoriza a divulgação de biografias de personagens públicos sem a permissão do biografado ou de familiares (o projeto é dela e do deputado Newton Lima, e foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça em abril, mas há um recurso na CCJ que está emperrando o andamento). A gente aprende em Brasília que o tempo é o tempo da política. Talvez eu tenha vivido todas as experiências. Tanto a de maior tristeza e incompreensão quanto a de felicidade neste período. Eu presidi a Comissão de Direitos Humanos e depois a vi presidida pelo Marco Feliciano...
Como você se sentiu ao vê-lo assumir seu lugar?
A gente reflete mais nos momentos de erros e derrotas individuais do que nos acertos. Ele fez com que a Câmara parasse para refletir sobre o tema dos direitos humanos, coletivamente, mais do que refletia nos momentos de acerto. Ali foi a hora em que o Brasil disse: nós damos importância a isso.
Houve uma reação enérgica da população...
Fizemos todo o possível para que o erro fosse contornado. O erro está dado. O que queremos é que não se repita. É aquela frase que os judeus dizem: lembrar para que não aconteça de novo. É como podemos compreender esse processo para que a Câmara extraia de um erro o que já está aí. Em vez de só chorar sobre ele.
Isso não é frustrante?
É um teste de persistência. Como dizia Drummond, "eu não sou as coisas e me revolto". Mas ressalto que essa revolta não é algo que tenha surgido em mim em Brasília. Eu nunca achei que Brasília fosse diferente do que é. Eu já sabia que era necessário reformar as instituições políticas quando fui para lá. Na verdade, não tenho como me desiludir com algo para onde fui já defendendo mudanças. Eu já me elegi defendendo a reforma política e vou sair de lá defendendo. Fui ver mais de perto os problemas que já conhecia. Talvez agora eu saiba a quantidade de gente que acredita na reforma política e o quanto é difícil construí-la lá dentro.
O que resume Brasília para você?
Brasília dá uma dimensão muito mais próxima do que é o Brasil. É complexo, desafiador. Em qualquer área em que você decida trabalhar em Brasília, encontra perspectivas e gargalos avassaladores. Talvez essa seja a charada do Brasil.
Não houve estranheza diante da sua decisão de sair de Brasília? Você foi a deputada federal mais votada na história de seu estado...
Acho que a gente se acostumou no Brasil às pessoas concorrerem sempre aos mesmos cargos. Para mim, os mandatos se encerram. Isso causa estranheza às pessoas. Fui eleita para quatro anos de deputada federal, não para concorrer eternamente. Me senti desafiada a aprender coisas novas. São perfis de pessoas. Eu acho que cada pessoa tem um na vida. As pessoas me falam: você tem que ter alguma tática. Eu não tenho tática. É um desejo meu voltar para Porto Alegre, conviver de novo com o movimento social.
O eleitor jovem, a se tomar pelo grito das ruas, anda bem desencantado com a política. E você sempre falou para esse eleitor...
Acho que o nível de identidade dos políticos com o eleitor mais jovem foi se perdendo. O que se busca sempre na política representativa é a identidade. Não existe como alguém representar alguém sem identidade. Isso tem acontecido desde as eleições dos últimos presidentes latinos. O que muitos não conseguiram compreender, quando viram o Evo Morales, é que é um presidente que tem uma identidade, causas parecidas com seu povo. Isso (as manifestações) não foi algo que aconteceu de uma hora para outra. Alguns tentam descaracterizar, dizendo que aquelas pessoas não tinham causas muito ao certo. Quem levantava cartolina dizendo que queria mudança profunda no país queria reforma política. Podia não estar escrita a expressão. A questão é como nós, os políticos, vamos ter que destrinchar isso para resgatar essa identidade.
Não houve ali uma negação da política?
Às vezes, a negação é a negação a uma forma de fazer política. Existem muitas pessoas que tentam negar a política como um todo. E esse é um dos maiores absurdos, né? Quem tem interesses poderosos não nega a política. Opera a política, beneficia-se dela, inclusive sendo mal feita. E esse é um dos maiores equívocos de quem quer transformar. Nega a política e não percebe tudo o que a gente pode construir. Acaba parecendo que política é isso, é a que é mal feita. Tem muito jovem pronto para ser deputado federal, com ideias e valores que eu tinha quando tentei o primeiro mandato. Não existe um salvador da pátria. Esse é um dos problemas atuais: o personalismo.
Você chegou a ser criticada ao aceitar verbas de uma indústria que fabrica armas. Como reage a isso?
A empresa Taurus, como todas as demais, contribuiu com nossa campanha, após conhecer minha trajetória e nossa plataforma para a cidade.
O contexto das ruas influenciou na sua decisão de sair?
Acabei de passar por um ano de reflexão profunda. Tive um ano muito difícil, porque sempre soube que mexeria com a expectativa das pessoas. Foi uma decisão dolorida. Agora consegui ficar inteira de novo. Junho e julho não têm a ver com a origem da decisão. Mas sem dúvida eu tenho a curiosidade de ver mais de perto essa geração. Esse movimento social é diferente do de 15 anos atrás. Quero estar mais perto fisicamente disso.
Como você enxerga o boom de novos partidos?
Temos que ter uma mudança no sistema político brasileiro. Não há transformações estruturais nele. A criação desses partidos é só mais um sintoma do sistema político. Há o personalismo, quando o partido é criado para abrigar uma personalidade política, como é o caso da Rede. E há o artificialismo. As regras todas atrapalham os partidos ideológicos e facilitam a criação dos fisiológicos. Nosso sistema eleitoral não solidifica partidos, mas personalidades.
Estamos em tempos de vilanização dos políticos. Muito por conta dos casos de corrupção. Como você vê isso?
A sociedade deve se forçar a pensar em como o Congresso reagiu quando ela se manifestou. E que o Congresso de alguma forma se aproximou do que ela queria. Se a gente fiscalizasse os deputados, de maneira mais ativa, talvez o resultado fosse muito mais próximo das nossas expectativas. Claro que o cidadão não tem condição de ficar protestando contra o Congresso o dia inteiro. Mas as pessoas mal lembram em quem votaram.
E o papel dos políticos?
É óbvio que o Congresso precisa passar por uma reforma política, por uma reforma enorme. Mas a população precisa ter uma postura de não simplesmente achar que a política é uma droga e virar as costas para ela. Porque poderia ter um padrão mais elevado se a fiscalização fosse mais permanente. E acho que o resultado dos meses de junho e julho prova isso. O (deputado) Henrique Fontana (PT-RS) diz uma coisa interessante: o Código Penal, proíbe, mas não impede assassinato. É óbvio que o nosso dever é lutar por uma reforma política que diminua o nível da corrupção no país. Mas mesmo que a gente altere todas as leis, o papel da população é o fiscalizador. Porque: da mesma forma que a gente muda o Código Penal e a polícia não vai deixar de existir, quem é a polícia do político? É essa população. Há um papel de poder real do povo.
12 de outubro de 2013
Maiá Menezes - O Globo
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