Quando Gilmar Mendes foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, em 27 de maio de 2002, decorrente da aposentadoria do Ministro Néri da Silveira, havendo tomado posse em 20 de junho de 2002, o site Correio da Cidadania publicou uma importante entrevista concedida por Dalmo de Abreu Dallari, advogado e professor da Faculdade de Direito da USP, a respeito de suas críticas à indicação – feita pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e posterior nomeação de seu advogado-geral da União para integrar o quadro do STF. Na avaliação de Dallari, com Gilmar Mendes no Supremo, as instituições democráticas passariam a correr um risco maior. A entrevista foi feita por Beatriz Passarinho. E vale a pena ler de novo.
Quais são os principais argumentos que fundamentam sua crítica à indicação, feita pelo presidente FHC, do advogado-geral da União, Gilmar Mendes, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal?
Dalmo Dallari: O Dr. Gilmar Mendes é figura muito conhecida na comunidade jurídica, não só por ocupar o cargo de advogado-geral da União, de confiança da presidência da República, mas, sobretudo, por suas reiteradas posições contrárias ao Direito, à Constituição, às instituições jurídicas e à ética que deve presidir as relações entre personalidades públicas.
Há muitos anos, o Dr. Gilmar apareceu como assessor e defensor do ex-presidente Collor, mesmo quando já estava evidente que tal presidente não tinha o mínimo respeito pela Constituição nem pela moralidade na administração pública. Depois disso, Mendes aparece como assessor do então ministro da Justiça, Nelson Jobim. Um dos momentos importante de sua assessoria foi a iniciativa para anular a demarcação de áreas indígenas, sob alegação de que a demarcação havia sido baseada em decreto inconstitucional. Em duas ações judiciais, o escritório de Jobim tentou a anulação da demarcação, mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que não havia qualquer inconstitucionalidade. Não tendo obtido sucesso perante o Judiciário, os defensores dos latifundiários contra os direitos indígenas voltaram à carga quando Nelson Jobim já era ministro da Justiça, aparecendo outra vez a mão do Dr. Gilmar Mendes. Sustentando ainda a inconstitucionalidade, os defensores dos latifundiários prepararam um projeto de decreto que foi afinal assinado por FHC, concedendo o direito a indenização aos invasores de áreas indígenas que haviam sido obrigados a recuar da invasão.
Depois disso, aparece Gilmar Mendes assessorando FHC, como redator das Medidas Provisórias e outros atos do presidente ou de órgãos do primeiro escalão da República. Nessa condição, ele preparou muitos atos inconstitucionais que foram assinados e aplicados. A conseqüência óbvia e inevitável é que houve muitas reações através de ações judiciais, especialmente de mandados de segurança, e em muitos desses casos, justamente porque os atos eram ilegais, houve a concessão de medidas liminares, revelando seu desprezo pela Constituição, pelo Direito, pelas instituições jurídicas, e também, sua absoluta incapacidade de convivência democrática.
Em várias oportunidades, Mendes saiu pelos jornais ofendendo grosseiramente juízes e tribunais. Disse que os juízes brasileiros viviam no “mundo da Lua”, chegando ao cúmulo de sua grosseria e falta de ética ao declarar que o Brasil não tinha um sistema judiciário, mas um “manicômio judiciário”, querendo insinuar que os juízes brasileiros eram todos loucos. É curiosos, aliás, que agora ele esteja querendo entrar no Judiciário como membro do STF. Então, ele é candidato a ser um dos loucos! Mendes também distribuiu grosseiras aos advogados brasileiros dizendo que todas as liminares eram produto de um conluio corrupto entre advogados e juízes. Na verdade, isso mostra seu despreparo para a convivência democrática.
Um dado muito importante que foi revelado agora – e tinha sido ocultado pelo presidente da República -, é que, em conseqüência dessas ofensas antiéticas, Mendes está sendo processado criminalmente perante o Judiciário, por crime de injúria. E é público e notório no Brasil que qualquer candidato a um cargo público é obrigado a provar que não está sendo processado criminalmente. É um absurdo que um porteiro do Ministério Público seja obrigado a fazer essa prova, sob risco de não ser nomeado, enquanto o Dr. Gilmar Mendes passa por cima disso.
Enfim, há muitos outros indícios da ilegalidade da sua situação, como ser sócio-proprietário do Instituto Brasiliense de Direito Público, o que é vedado pela Lei Orgânica do Ministério Público que proíbe ao seus membros o exercício do comércio. Mas pior do que isso, conforme noticiado pela revista “Época”, Mendes pagou com dinheiro da Advocacia-Geral da União para que seus auxiliares fizessem curso na Instituição de sua propriedade.
O que se verifica, então, é que aquela exigência da Constituição Federal, no artigo 101, que o candidato ao Supremo Tribunal Federal tenha notável saber jurídico e reputação ilibada, não está sendo atendida pelo Dr. Gilmar Mendes. Ele de fato não tem o saber jurídico, não age segundo o Direito, não compreende sua importância. São todos esses fatores objetivos, extremamente importantes, que revelam a absoluta inadequação dessa indicação feita pelo presidente da República.
Diante dessa incompatibilidade de Gilmar Mendes para o cargo, quais seriam as motivações do governo federal que justificam essa indicação?
Há alguns exemplos dos quais podemos verificar as reais motivações. Estão correndo insistente notícias de mudanças na Constituição para favorecer o presidente FHC e o provável candidato do PSDB, caso o atual candidato não consiga reagir. Isso seria feito, aplicando ao Brasil a mesma tese que foi aplicada no Peru para permitir ao Fujimori o terceiro mandato. FHC foi eleito quando a Constituição só permitia um mandato. Depois disso foi feita uma emenda constitucional, patrocinada por ele mesmo, permitindo a eleição por dois mandatos. O argumento seria de que ele só foi eleito uma vez depois da vigência dessa emenda, dessa nova regra constitucional. Seria uma situação nova, então teria direito a uma nova eleição. Evidente que isso seria contestado, iria ao Supremo Tribunal…
Outra proposta, que já chegou a ser anunciada pela imprensa, embora ainda não formalizada, é no sentido de dar ao presidente, mesmo depois de terminado seu mandato, as mesmas proteções constitucionais, imunidades e direito a foro privilegiado que ele tem como presidente. Então o ex-presidente gozaria das imunidades e privilégios de um presidente. Isso, evidentemente, afrontaria a Constituição, no princípio da igualdade de todos perante a lei. As imunidades e privilégios são dados à pessoa que atua como presidente, e não a um cidadão comum. Não existiria mais a igualdade de todos perante a lei. Para sustentar essa decisão, o Supremo Tribunal Federal teria que agir. Mais uma vez, o presidente FHC tem grande interesse na obtenção de maioria no Supremo, sobretudo agora, em face de inúmeras acusações de corrupção no governo federal que vem sendo noticiada pela imprensa.
Visto tudo isso, é absolutamente indispensável que haja uma reação da comunidade jurídica como uma tentativa de preservar a Constituição, a supremacia do Direito, além de tudo, preservar a moralidade da administração pública. Essas são as razões da grande resistência na indicação de Gilmar Mendes pelo presidente da República.
O presidente FHC deveria ter procedido da mesma forma que os presidentes norte-americanos, ouvindo previamente a comunidade jurídica sobre os nomes que ele tenha a intenção de indicar. Assim, o indicado seria efetivamente representativo.
Na sua opinião, quais são as modificações necessárias a fim de se ter um critério mais apropriado para a indicação dos ministros do STF?
Pela atual redação da Constituição, o presidente não é efetivamente obrigado a ouvir ninguém, mas ele é moralmente obrigado, porque o sistema se define como Estado Democrático de Direito. O membro do Supremo Tribunal não é um representante do presidente da República, mas é alguém que vai falar em nome do povo. Portanto, uma exigência seria de que o presidente, antes de fazer sua indicação, ouvisse a comunidade jurídica.
Uma outra modificação importante seria transformar o STF em Corte Constitucional, apenas isso, por ter excesso de atribuições e vem exercendo mal.
Há ainda uma série de propostas para que o cargo de ministro do STF não seja vitalício, para que ele receba um mandato com prazo determinado. Este prazo, nas Constituições do mundo variam. Só nos EUA é que existe a vitaliciedade. Na Alemanha, Áustria, Itália , Portugal e Espanha esses mandatos variam de seis a doze anos.
Agora, com a nomeação, devemos ficar muito vigilantes porque, obviamente, ele foi nomeado com tanta insistência, para fazer o jogo político de interesses do presidente da República, o que não é exatamente uma manobra democrática. Não há dúvidas de que com a sua nomeação, as próprias instituições democráticas passam a correr um risco maior, e com isso fica indispensável a vigilância de todos os brasileiros.
03 de maio de 2017
Celso Serra
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