“Não existe objetivamente o que se nomeia democracia, estado de direito, constituição ou modelo de governo, em um povo que não compreende o significado e a função prática de conceitos tão básicos”Que a política em uma sociedade traz em si a marca da cultura em geral naquele contexto, parece uma verdade segura, clara e até simples. Contudo, pouca atenção é dada às consequências lógicas desta importância fundamental da cultura para a política. Desde esta perspectiva, não existe objetivamente o que se nomeia democracia, estado de direito, constituição ou modelo de governo, em um povo que não compreende o significado e a função prática de conceitos tão básicos, cuja definição é ignorada pela maioria. Ao invés de categorias técnicas, o vocabulário dos debates públicos é convertido em slogans de propaganda, com a finalidade de influenciar a “opinião pública” e seduzir eleitores, mas jamais para descrever e avaliar realidades efetivas. No caso de palavras como esquerda e direita, ocorre a redefinição mais determinante para os rumos da política brasileira. Inicialmente, como produto imediato do trabalho de militância, promoveu-se uma idealização da esquerda e esta absolutamente identificada aos partidos de discurso marxista. Posteriormente, com a noção de esquerda desprestigiada para a população após os anos de governo do PT, e uma direita que surge como reação se auto-definindo pelo combate a tudo que se rotule como “esquerdismo”.
Há certo consenso quanto ao sentido ainda vigente da divisão entre esquerda e direita, de acordo com princípios gerais que guiam a defesa de mais ou de menos funções assumidas pelo estado em uma sociedade. Fatores tradicionais como o abuso que representam impostos pesados para a população já habituada à precariedade dos ineficientes serviços públicos, além dos frequentes escândalos de corrupção, levariam naturalmente a política brasileira a tender ao que se convenciona chamar direita. Porém, deu-se o contrário, graças a uma incansável militância que conseguiu obscurecer a simplicidade do problema, ao mistificar o discurso estatizante e monopolizar a luta que conduz a esta direção.
O êxito marxista foi tamanho que passou despercebido para a grande maioria de cidadãos conservadores que não havia um só partido que atuasse para representá-los. Não se tratava apenas de trapaça para facilitar disputas eleitorais, com o enfraquecimento e até eliminação de seus mais radicais antagonistas. A estratégia tem como ponto de partida a constatação de que ocorre necessariamente uma oscilação entre rumos opostos do estado em função da mudança de partidos que ocupam o governo a cada novo mandato, cada qual com seu viés doutrinário. Sendo assim, tal processo nunca conduz unilateralmente para o destino que um único grupo ideológico ambiciona, mas segue o caminho que resulta dialeticamente da polarização em torno do poder. Só nesse contexto, se compreende a conversão da “social-democracia” em direita, já que uma esquerda moderada está “à direita” dos extremistas revolucionários, ao menos segundo a perspectiva dos próprios marxistas. Nesta direção, os “progressistas” se viram livres para avançar a agenda do Foro de SP, sem qualquer margem para “retrocessos”.
Devastados pela perturbadora estratégia descrita, a maioria dos brasileiros assume, sem qualquer crítica, o monopólio marxista do conceito de esquerda, passando à crença de que a defesa das ideias liberais e conservadoras seriam o antídoto para reverter uma formação cultural e política que nos conduziu a uma utopia socialista tão nociva e perigosa. Não se deram conta que o marxismo não representa um programa de governo alternativo, muito menos um modelo estatizante para administrar a sociedade e tentar oferecer soluções para seus problemas. Isto seria o caso de partidos de uma esquerda verdadeiramente democrática, cujas teses são legítimas num debate político, ainda quando julgadas deficientes e obsoletas, pois não são uma ameaça ao estado de direito.
Ora, se há partidos cuja meta é destruir as instituições do país, para substituí-las por um regime ditatorial, participar de discussões públicas e eleições para combatê-los não é propriamente um exercício democrático. Pelo contrário, consiste em legitimar com o status de adversários políticos àqueles que, sabida e declaradamente, atuam como inimigos da pátria.
13 de janeiro de 2017
Bruno Bertolossi de Carvalho, 34 anos, antropólogo pela Unicamp, atualmente fazendo mestrado em filosofia na Colômbia, Universidade Caldas, pesquisa em cultura política brasileira, influenciada pelas idéias de Antonio Gramsci, além de manter um blog com textos sobre o Brasil, Formação, Filosofia e Teologia. Escreveu para o Implicante na condição de autor convidado. Se você gostaria de publicar algum texto seu aqui nesta seção, clique aqui e siga as instruções.
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