Nosso colunista Thiago Pacheco trata do debate sobre o sistema prisional brasileiro.
A luta entre facções criminosas nos presídios brasileiros nunca foi tão violenta e renhida como nos últimos dias. Tudo começou, aparentemente, com o fim de um “convênio operacional” que existia entre o Comando Vermelho e o PCC. As duas maiores facções criminosas do país estavam há anos unidas em seus propósitos e dividindo – senão fraternalmente, com notável pragmatismo comercial – o mercado de drogas e armas. Mais ou menos quando o governo federal foi sacudido pelo impeachment, as facções se desentenderam, o que passou a gerar consequências nos presídios de todo o país. E quem imaginaria que o PCC, fundado em São Paulo, possui ramificações no Amazonas? Que o “partido”, como o chamam seus integrantes, tenha uma representação ativa no Estado vizinho do Paraná, por exemplo, é até compreensível: uma viagem de carro de poucas horas separa Curitiba de São Paulo. Entretanto, para quem mora no sudeste, o Amazonas sempre pareceu um rincão distante, no qual chegam, depois de muitas horas, apenas voos que fazem várias escalas. Surpresa: o PCC só não é mais forte no Amazonas do que a facção local, a Família do Norte (FDN). Segundo o noticiário, a FDN contaria inclusive com integrantes do Poder Judiciário local entre seus “colaboradores”, e movimenta uma milionária “economia paralela” amazonense, alimentada por cocaína e fuzis vindos do Peru e outros países limítrofes com tradição em tais ramos de atuação.
As redes sociais, como sempre, ficaram cheias de opiniões sobre o “massacre” de presos. Quem os massacrou foram outros presos, e não a polícia – o que gerou as primeiras dificuldades para a imprensa noticiar o acontecido, tão habituada a botar tudo na conta da PM e tratar o criminoso como vítima emparedada entre a fome e a vontade de comer. Até mesmo o Papa manifestou sua consternação com a condição em que os presos vivem e morrem, e todos os matizes de progressistas e liberais se apressaram em lembrar que os presos, afinal, são “gente como a gente” – na verdade, “gente como VOCÊS”, já que o liberalismo internético dificilmente olha para o próprio umbigo. As reações indignadas se exacerbaram quando se passou a falar na indenização devida aos familiares dos presos mortos. Como os detentos estavam “sob custódia do Estado”, e este não conseguiu garantir sua integridade física, as famílias devem ser indenizadas. Os “reaças” reagiram lembrando que, entre os mortos, havia um sujeito que estuprou e degolou uma menina de 4 anos, cuja família jamais foi indenizada – assim como latrocidas que mataram pais e mães de família que se encaminhavam para o trabalho, e até mesmo um estuprador que tinha o curioso hábito de infectar suas vítimas com o vírus HIV de propósito, como uma coroação do ato. Nenhuma das vítimas ou familiares foram indenizados. E nem conseguiriam ser se procurassem o judiciário: este entende que, quando você está na rua, não está “sob custódia do Estado” – embora, paradoxalmente, você esteja proibido de se defender legitimamente com meios equivalentes ao da agressão mais estatisticamente comum (arma de fogo) e o monopólio da força pertença exclusivamente ao Estado. Assim, se não houver um policial por perto quando você precisar, morra condignamente, sem se queixar.
A maioria das discussões passou ao largo de se aprofundar sobre o ponto central: como é que as coisas chegaram ao ponto de todo o sistema penitenciário ter deixado de pertencer ao Estado e ser controlado pelas facções criminosas que a própria ideia de cadeia deveria refrear? É absolutamente certo que o governo central nos últimos 13 anos tem muito a responder, mas o descaso é geral, e também imputável a governadores de Estado, não apenas à presidência da república. Mas se o péssimo tratamento dispensado à segurança pública é apartidário, nem de longe consegue esconder sua coloração ideológica. Não se abandonou a questão por esquecimento ou incompetência: foi algo cuidadosamente deliberado para que nos saíssemos com a conhecida solução à brasileira, que é sempre tirar o sofá da sala. Nove entre dez especialistas sugerem que a única solução para o problema é legalizar as drogas e soltar quase todo mundo que está preso, já que, evidentemente, não há espaço para todos (a manchete “há 5x presos onde só cambem x” deve ser uma das mais recorrentes no Brasil) e é isso que acaba causando rebeliões. A legalização como panaceia universal sempre me passa pela cabeça quando caminho nas ruas no entorno de onde trabalho, e vejo vendedores de cigarro contrabandeado e seus pequenos postos de trabalho em esquinas menos movimentadas e mais discretas. E soltar presos apenas porque não há, momentaneamente, lugar para eles? É realmente uma sugestão de quem tem vocação para corno, como na piada do sofá.
E que tal obrigar os presos a trabalhar – nem que seja para que se sustentem, e deixem de ser um peso adicional para o contribuinte? Nada feito: é desumano. Nossa “constituição cidadã” proíbe o trabalho forçado (art. 5º, XLVII, “c”). E ninguém há de negar que isso fica lindo no papel: “uau, como nossa constituição é avançada a sintonizada com os direitos humanos!” De fato. Isso deve ter alguma relação com o fato de dividirmos as responsabilidades da seguinte maneira: quem opta por não viver conforme os ditames da sociedade, se for pego, vai poder passar seu tempo de reclusão na completa ociosidade, se assim desejar, sendo mantido pelo dinheiro do contribuinte – mas não é só, e, como se viu, se morrer no período de custódia, o mesmo contribuinte custeia a indenização à sua família. O fato das condições em que o preso passa esse tempo serem, em quase todos os casos, ruins, acaba obscurecendo o julgamento liberal-progressista sobre o assunto: “ah, então vocês acham que é um ‘prêmio’ ir pra cadeia?” – não é exatamente um “prêmio”, mas se já damos de barato que o Estado não manda nas cadeias, porque é que as próprias facções que as controlam até agora não investiram para reformá-las? O dinheiro que é usado para subornar agentes penitenciários também poderia ser aplicado nisso.
Brincadeiras à parte, chegou-se a uma encruzilhada: a segurança pública está entrando rapidamente em colapso. Já passamos dos 60 mil homicídios por ano, as facções criminosas controlam setores do Judiciário e praticamente todo o sistema prisional. Como é que se resolve isso? Francamente, não tenho idéia – mas suspeito que o amolecimento das penas sob pretextos humanistas mais atrapalhe do que ajude, assim como uma outra geração de idéias absurdas quem vêm por aí, como a “inconstitucionalidade da pena de prisão”, defendida, veja você, por um magistrado que é responsável por execuções penais. Em suma, o galinheiro está cheio de contribuintes e é guardado por raposas muito espertas. Defenda-se quem puder.
13 de janeiro de 2017
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.
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