Temos o nosso Talleyrand dos trópicos
A democracia brasileira saiu robustecida com o impeachment de Dilma. Não porque Dilma foi punida, mas pela forma como se deu o processo.
O que não quer dizer que ela não deveria ter sido punida. É evidente que sim. O governo de Dilma, além de assombrosamente ineficiente, foi corrupto. Se ela não se corrompeu em particular, permitiu a corrupção em geral. E, no caso específico do tema julgado pelo Senado, está claro que Dilma mentiu na campanha eleitoral, fato admitido inclusive por Lula.
Mas essa, agora, já é discussão antiga. Importa o que virá pela frente. Digo que a democracia se fortaleceu porque o Brasil enfim descobriu que o poder é exercido não apenas pelo Executivo, mas também pelo Legislativo e pelo Judiciário. Nós, com nossa tradição populista, monarquista e ditatorial, temos a tendência de pensar que a única eleição que importa é a do Executivo, que é o Executivo quem manda e que é do Executivo a responsabilidade exclusiva pelo bem-estar do cidadão.
Não é assim. O verdadeiro guardião da democracia é o Legislativo. A eleição para o Executivo é quase plebiscitária. Há, em geral, escassas opções em cada eleição, e muitos eleitores escolhem não o que querem, mas o que não querem. O Legislativo é mais plural e infinitamente mais representativo. Toda ou quase toda a sociedade está representada no Congresso.
A longa discussão do impeachment, e também a atuação de Eduardo Cunha na presidência da Câmara, talvez demonstre de vez ao Brasil algo que deveria ter sido compreendido três séculos atrás, quando Montesquieu defendeu a separação dos poderes e a monarquia constitucional.
Avançamos, portanto.
Porém... o nosso Legislativo continua sendo o nosso Legislativo. Se a sociedade brasileira é historicamente adepta ao escamoteio e à dissimulação, os congressistas brasileiros não seriam diferentes. Em meio ao impeachment de Dilma, foi urdida uma sofisticada trama lateral entre o PT e o PMDB. Não foi por acaso que Lula e Renan Calheiros se reuniram, às vésperas da votação. O sucesso extraordinário desse conluio foi a manutenção dos direitos políticos de Dilma. Não que Dilma importe. Dilma é irrelevante, não tem nenhuma significação política. Mas o seu "perdão", digamos assim, abre um precedente para que outros direitos políticos sejam mantidos, depois de outras condenações.
Foi uma manobra genial.
Renan Calheiros é nosso Talleyrand. Os governos passam, e ele continua. O longo braço da Justiça não é longo o suficiente para tocá-lo. Eduardo Cunha caiu em desgraça, Dilma caiu em desgraça, Lula caiu em desgraça, é possível que Aécio caia em desgraça, mas Renan está lá, sorrindo enigmaticamente.
Talleyrand dizia que o homem inventou as palavras para disfarçar os pensamentos. Renan Calheiros sabe disso melhor do que ninguém, nessa alegre república que se esparrama do lado de baixo do Equador.
02 de setembro de 2016
David Coimbra, Zero Hora, RS
A democracia brasileira saiu robustecida com o impeachment de Dilma. Não porque Dilma foi punida, mas pela forma como se deu o processo.
O que não quer dizer que ela não deveria ter sido punida. É evidente que sim. O governo de Dilma, além de assombrosamente ineficiente, foi corrupto. Se ela não se corrompeu em particular, permitiu a corrupção em geral. E, no caso específico do tema julgado pelo Senado, está claro que Dilma mentiu na campanha eleitoral, fato admitido inclusive por Lula.
Mas essa, agora, já é discussão antiga. Importa o que virá pela frente. Digo que a democracia se fortaleceu porque o Brasil enfim descobriu que o poder é exercido não apenas pelo Executivo, mas também pelo Legislativo e pelo Judiciário. Nós, com nossa tradição populista, monarquista e ditatorial, temos a tendência de pensar que a única eleição que importa é a do Executivo, que é o Executivo quem manda e que é do Executivo a responsabilidade exclusiva pelo bem-estar do cidadão.
Não é assim. O verdadeiro guardião da democracia é o Legislativo. A eleição para o Executivo é quase plebiscitária. Há, em geral, escassas opções em cada eleição, e muitos eleitores escolhem não o que querem, mas o que não querem. O Legislativo é mais plural e infinitamente mais representativo. Toda ou quase toda a sociedade está representada no Congresso.
A longa discussão do impeachment, e também a atuação de Eduardo Cunha na presidência da Câmara, talvez demonstre de vez ao Brasil algo que deveria ter sido compreendido três séculos atrás, quando Montesquieu defendeu a separação dos poderes e a monarquia constitucional.
Avançamos, portanto.
Porém... o nosso Legislativo continua sendo o nosso Legislativo. Se a sociedade brasileira é historicamente adepta ao escamoteio e à dissimulação, os congressistas brasileiros não seriam diferentes. Em meio ao impeachment de Dilma, foi urdida uma sofisticada trama lateral entre o PT e o PMDB. Não foi por acaso que Lula e Renan Calheiros se reuniram, às vésperas da votação. O sucesso extraordinário desse conluio foi a manutenção dos direitos políticos de Dilma. Não que Dilma importe. Dilma é irrelevante, não tem nenhuma significação política. Mas o seu "perdão", digamos assim, abre um precedente para que outros direitos políticos sejam mantidos, depois de outras condenações.
Foi uma manobra genial.
Renan Calheiros é nosso Talleyrand. Os governos passam, e ele continua. O longo braço da Justiça não é longo o suficiente para tocá-lo. Eduardo Cunha caiu em desgraça, Dilma caiu em desgraça, Lula caiu em desgraça, é possível que Aécio caia em desgraça, mas Renan está lá, sorrindo enigmaticamente.
Talleyrand dizia que o homem inventou as palavras para disfarçar os pensamentos. Renan Calheiros sabe disso melhor do que ninguém, nessa alegre república que se esparrama do lado de baixo do Equador.
02 de setembro de 2016
David Coimbra, Zero Hora, RS
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