O país é que exigiu nas ruas o impeachment
A senadora Gleisi Hoffmann sugere que o Senado seja casa de tolerância. Já o cacique Renan rebate que parece hospício. E a presidenta não percebe que está sendo condenada enquanto chefa de governo. Para além do show de horrores — o que é mais grave — perde-se a oportunidade única de enfrentar a questão de fundo do sistema de nossa representação política. Ou não seria total falha de juízo que os senadores tenham promovido “um destaque regimental no texto constitucional”?
O delírio tropical parece ter sido o fundamento sobre o qual construímos nossa cultura de impunidade e jeitinho, nosso pacto pelo fingimento de reduzir tudo a um mero pastiche “para inglês ver”, como na lei da abolição do tráfico de escravos, que retardou em 40 anos a Abolição. Quando culturas politicamente mais maduras se pautam exatamente pela premissa oposta: por ter rabo de palha, a própria condição humana de errar pelo falho juízo para discernir, é que tenho o dever cívico de dar ao outro o direito de me julgar, instaurando-se assim a cultura da mútua responsabilidade da cidadania! Fato a que se referiu Miguel Reale Júnior no seu libelo final, quando desmontou a frágil tese da chantagem de Eduardo Cunha lançada pela defesa: o país é que exigiu nas ruas o impeachment pelo estelionato eleitoral cometido pela presidente eleita na sua campanha de 2014. O problema de tentar enganar a todos a todo tempo é que nem o PT percebeu a gravíssima contradição de que se estava ali a julgar um chefe de Estado por atos típicos de chefe de governo, pois nosso presidencialismo de coalizão não separa as responsabilidades de uma e de outra função.
Nossos senadores insistiram em discutir questões de governo a partir de uma alegada objetividade da acusação que se cingia a dois crimes contra a Lei Orçamentária. Mas retornavam sempre ao bate-boca faccioso, num cenário que mais parecia a Escolinha do Professor Raimundo. Em momento algum tentaram fundamentar o debate em doutrina política séria, mas na mera disputa populista, sabendo que estavam sendo televisados.
O ponto fundamental a ser debatido é o sistema político. Há décadas são pautadas, mas nunca tramitadas, as propostas de reforma política e, no caso deste processo, se evidencia claramente um parlamentarismo de facto, embora não o seja de jure. É de se perguntar se este impeachment nada mais foi do que um recall usurpado pelo Senado, que condenou um presidente da República por crime de responsabilidade por atos típicos de chefe de governo.
Como o chefe de governo coexiste com o chefe de Estado numa só pessoa, sacrifica-se a função do chefe de Estado com a condenação do chefe de governo. Como é inviável transformar nosso presidencialismo de jure, mas não de facto, por que não mitigá-lo, delegando de vez a chefia do governo ao Congresso, num processo muito menos danoso ao país e sem carecer de uma PEC de custosa tramitação? Missão que um Temer tem condições de articular se o melhor de nossa cidadania botar a boca no trombone da mídia.
Perdemos uma grande oportunidade de um sério debate sobre os custos da (in)governabilidade do presidencialismo de coalizão que só provoca corrupção e crises. A gambiarra de um destaque regimental atropelar o texto constitucional, para além da demanda judicial que renderá, mais parece um samba do crioulo doido, o máximo “para inglês ver”.
05 de setembro de 2016
Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão
O Globo
A senadora Gleisi Hoffmann sugere que o Senado seja casa de tolerância. Já o cacique Renan rebate que parece hospício. E a presidenta não percebe que está sendo condenada enquanto chefa de governo. Para além do show de horrores — o que é mais grave — perde-se a oportunidade única de enfrentar a questão de fundo do sistema de nossa representação política. Ou não seria total falha de juízo que os senadores tenham promovido “um destaque regimental no texto constitucional”?
O delírio tropical parece ter sido o fundamento sobre o qual construímos nossa cultura de impunidade e jeitinho, nosso pacto pelo fingimento de reduzir tudo a um mero pastiche “para inglês ver”, como na lei da abolição do tráfico de escravos, que retardou em 40 anos a Abolição. Quando culturas politicamente mais maduras se pautam exatamente pela premissa oposta: por ter rabo de palha, a própria condição humana de errar pelo falho juízo para discernir, é que tenho o dever cívico de dar ao outro o direito de me julgar, instaurando-se assim a cultura da mútua responsabilidade da cidadania! Fato a que se referiu Miguel Reale Júnior no seu libelo final, quando desmontou a frágil tese da chantagem de Eduardo Cunha lançada pela defesa: o país é que exigiu nas ruas o impeachment pelo estelionato eleitoral cometido pela presidente eleita na sua campanha de 2014. O problema de tentar enganar a todos a todo tempo é que nem o PT percebeu a gravíssima contradição de que se estava ali a julgar um chefe de Estado por atos típicos de chefe de governo, pois nosso presidencialismo de coalizão não separa as responsabilidades de uma e de outra função.
Nossos senadores insistiram em discutir questões de governo a partir de uma alegada objetividade da acusação que se cingia a dois crimes contra a Lei Orçamentária. Mas retornavam sempre ao bate-boca faccioso, num cenário que mais parecia a Escolinha do Professor Raimundo. Em momento algum tentaram fundamentar o debate em doutrina política séria, mas na mera disputa populista, sabendo que estavam sendo televisados.
O ponto fundamental a ser debatido é o sistema político. Há décadas são pautadas, mas nunca tramitadas, as propostas de reforma política e, no caso deste processo, se evidencia claramente um parlamentarismo de facto, embora não o seja de jure. É de se perguntar se este impeachment nada mais foi do que um recall usurpado pelo Senado, que condenou um presidente da República por crime de responsabilidade por atos típicos de chefe de governo.
Como o chefe de governo coexiste com o chefe de Estado numa só pessoa, sacrifica-se a função do chefe de Estado com a condenação do chefe de governo. Como é inviável transformar nosso presidencialismo de jure, mas não de facto, por que não mitigá-lo, delegando de vez a chefia do governo ao Congresso, num processo muito menos danoso ao país e sem carecer de uma PEC de custosa tramitação? Missão que um Temer tem condições de articular se o melhor de nossa cidadania botar a boca no trombone da mídia.
Perdemos uma grande oportunidade de um sério debate sobre os custos da (in)governabilidade do presidencialismo de coalizão que só provoca corrupção e crises. A gambiarra de um destaque regimental atropelar o texto constitucional, para além da demanda judicial que renderá, mais parece um samba do crioulo doido, o máximo “para inglês ver”.
05 de setembro de 2016
Jorge Maranhão é diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão
O Globo
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