Será razoável que se tenha tornado natural como bala perdida que uma autoridade imponha toque de recolher e diga quando as pessoas podem circular?
A cerimônia de abertura da Olimpíada teve três ausências muito educativas sobre o estado de calamidade do Rio de Janeiro: Lula, Sérgio Cabral e Eike Batista. Quem diria, em 2009, que esses três então heróis-estadistas mal pudessem, em 2016, botar a cara na rua, muito menos dar pinta no Maracanã?
Sejamos mais precisos, porém. Quem quer que se lembre do dia 2 de outubro de 2009 — aquele, redentor, em que, no reino da Dinamarca, a cidade foi escolhida sede dos Jogos ora em curso — deveria refletir sobre por que viemos parar aqui (e eles, quase lá), e sobre como não é acaso que coincidam um evento esportivo tão extraordinário e a própria decomposição do Rio, do Brasil.
Passados quase sete anos daquela fantasia em Copenhagen, o trio de heróis-fanfarrões derreteu — o BNDES minguou (subnutrindo os campeões nacionais do petismo), a Petrobras, saqueada, afundou (fazendo emergir a mentira lulista do pré-sal), as UPPs, farsa prolongada, já não existem nem como mistificação — e o Rio de Janeiro, ainda enganado-adiado pelo doping de um legado, logo tombará deprimido, com metrô, VLT, Porto Maravilha e tudo mais. Por quê?
A explicar e consolidar a história toda, a própria natureza do homem público brasileiro: a impostura. Nunca houve tanta, de todos os lados, desde todas as esferas de poder, quanto nos anos em que o Rio fingiu preparar-se para funcionar. (Falaram até em Barcelona, o modelo, isso enquanto, ali ao lado, fabricavam Macaé.) É ela, a impostura, a responsável pela miséria de estarem tantos entre os apaixonados pela Olimpíada — no momento mesmo em que ocorrem — preocupados com o que virá depois.
E como não?
Se é verdade que eles, os heróis derretidos, estão politicamente mortos, certo é também que aquilo que representam não será enterrado enquanto não enfrentarmos a realidade e estourarmos a bolha que ainda hoje o sobrevivente Eduardo Paes infla: a de que a Olimpíada, maior evento da história do país, acontecimento espetacular, é conquista de mentiras erguidas como ciclovia, e a de que a conta político-econômica de tamanho conjunto de irresponsabilidades — que reproduzirá sobre o município, em brevíssimo, a mesma falência que ora dilapida o Estado do Rio — pesará novamente sobre nós, leitor.
Ou você acredita na propaganda eleitoral de que as finanças da cidade estão sob controle? Se sim, os estelionatos marqueteiros de Dilma Rousseff e Cabral-Pezão nada lhe terão ensinado.
Prestemos atenção. Nós já pagamos o preço – na escassez de segurança, no sucateamento de hospitais e escolas — faz mais de dois anos. Há, contudo, um símbolo presente para essa fatura. Algo talvez banal (para uma população que se acostumou a avaliar riscos antes de pegar uma linha vermelha da vida), mas muito significativo. Porque não importa quanto investimento se faça em infraestrutura se — depois de todos os transtornos, na chamada hora H — o cotidiano das pessoas fica ainda mais comprometido. Ou será razoável que se tenha tornado natural como bala perdida que uma autoridade imponha toque de recolher e diga quando as pessoas podem circular? Nada contra a Família Olímpica. Tudo contra a barbaridade de que, para ela desfilar, nós devamos restar em casa. Que mensagem se quer passar com isso?
Que clima olímpico — que espírito pacificado — querem de nós, se o Rio de Janeiro, mais sitiado que nunca, está armado para uma guerra? Não há legado que legitime um estado de exceção. Ou será errado dar nome às coisas?
Penso também na indecência em que consiste este recurso de decretar feriados. Era como fazíamos nas brincadeiras de moleque, diante de um aperto, ao gritar “altos!” — e ainda lá, na farra infantil, algo de imoral havia naquilo. “Altos” é ao que nos obriga o prefeito — para disfarçar o caos, para camuflar a incompetência, a falta de planejamento. O país está quebrado, parado. A cidade, a poucos meses de se enxergar traída, vendida. Mas, ainda assim, os governantes decidem enfrentar a impossibilidade urbana multiplicando feriados.
É quase tudo que a cultura estatista pode oferecer. O resto está no chororô de se declarar falido para esmolar mais dinheiro público. É a melhor síntese da onipresença do governo entre nós: enfezou, faltou, imprimam-se reais, aumentem-se os impostos. Complicou, embolou, meta-se um canetaço e determinado estará que o cidadão não pode trabalhar, que as empresas não podem produzir.
Curiosamente, no entanto, a galera vibra nas arquibancadas. É como se o menino das argolas, a própria personificação da certeza, a definição exata de estabilidade, caísse, falhasse — e a torcida nacional comemorasse o tombo como um gol do Pelé. Claro. Um novo feriado é inveja no coração do brasileiro de outras partes e medalha de ouro no peito do carioca, quando a festa do esporte vira carnaval, micareta. Não importa se for também evidente programa de aceleração do desemprego. Depois a gente vê.
12 de agosto de 2016
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo
A cerimônia de abertura da Olimpíada teve três ausências muito educativas sobre o estado de calamidade do Rio de Janeiro: Lula, Sérgio Cabral e Eike Batista. Quem diria, em 2009, que esses três então heróis-estadistas mal pudessem, em 2016, botar a cara na rua, muito menos dar pinta no Maracanã?
Sejamos mais precisos, porém. Quem quer que se lembre do dia 2 de outubro de 2009 — aquele, redentor, em que, no reino da Dinamarca, a cidade foi escolhida sede dos Jogos ora em curso — deveria refletir sobre por que viemos parar aqui (e eles, quase lá), e sobre como não é acaso que coincidam um evento esportivo tão extraordinário e a própria decomposição do Rio, do Brasil.
Passados quase sete anos daquela fantasia em Copenhagen, o trio de heróis-fanfarrões derreteu — o BNDES minguou (subnutrindo os campeões nacionais do petismo), a Petrobras, saqueada, afundou (fazendo emergir a mentira lulista do pré-sal), as UPPs, farsa prolongada, já não existem nem como mistificação — e o Rio de Janeiro, ainda enganado-adiado pelo doping de um legado, logo tombará deprimido, com metrô, VLT, Porto Maravilha e tudo mais. Por quê?
A explicar e consolidar a história toda, a própria natureza do homem público brasileiro: a impostura. Nunca houve tanta, de todos os lados, desde todas as esferas de poder, quanto nos anos em que o Rio fingiu preparar-se para funcionar. (Falaram até em Barcelona, o modelo, isso enquanto, ali ao lado, fabricavam Macaé.) É ela, a impostura, a responsável pela miséria de estarem tantos entre os apaixonados pela Olimpíada — no momento mesmo em que ocorrem — preocupados com o que virá depois.
E como não?
Se é verdade que eles, os heróis derretidos, estão politicamente mortos, certo é também que aquilo que representam não será enterrado enquanto não enfrentarmos a realidade e estourarmos a bolha que ainda hoje o sobrevivente Eduardo Paes infla: a de que a Olimpíada, maior evento da história do país, acontecimento espetacular, é conquista de mentiras erguidas como ciclovia, e a de que a conta político-econômica de tamanho conjunto de irresponsabilidades — que reproduzirá sobre o município, em brevíssimo, a mesma falência que ora dilapida o Estado do Rio — pesará novamente sobre nós, leitor.
Ou você acredita na propaganda eleitoral de que as finanças da cidade estão sob controle? Se sim, os estelionatos marqueteiros de Dilma Rousseff e Cabral-Pezão nada lhe terão ensinado.
Prestemos atenção. Nós já pagamos o preço – na escassez de segurança, no sucateamento de hospitais e escolas — faz mais de dois anos. Há, contudo, um símbolo presente para essa fatura. Algo talvez banal (para uma população que se acostumou a avaliar riscos antes de pegar uma linha vermelha da vida), mas muito significativo. Porque não importa quanto investimento se faça em infraestrutura se — depois de todos os transtornos, na chamada hora H — o cotidiano das pessoas fica ainda mais comprometido. Ou será razoável que se tenha tornado natural como bala perdida que uma autoridade imponha toque de recolher e diga quando as pessoas podem circular? Nada contra a Família Olímpica. Tudo contra a barbaridade de que, para ela desfilar, nós devamos restar em casa. Que mensagem se quer passar com isso?
Que clima olímpico — que espírito pacificado — querem de nós, se o Rio de Janeiro, mais sitiado que nunca, está armado para uma guerra? Não há legado que legitime um estado de exceção. Ou será errado dar nome às coisas?
Penso também na indecência em que consiste este recurso de decretar feriados. Era como fazíamos nas brincadeiras de moleque, diante de um aperto, ao gritar “altos!” — e ainda lá, na farra infantil, algo de imoral havia naquilo. “Altos” é ao que nos obriga o prefeito — para disfarçar o caos, para camuflar a incompetência, a falta de planejamento. O país está quebrado, parado. A cidade, a poucos meses de se enxergar traída, vendida. Mas, ainda assim, os governantes decidem enfrentar a impossibilidade urbana multiplicando feriados.
É quase tudo que a cultura estatista pode oferecer. O resto está no chororô de se declarar falido para esmolar mais dinheiro público. É a melhor síntese da onipresença do governo entre nós: enfezou, faltou, imprimam-se reais, aumentem-se os impostos. Complicou, embolou, meta-se um canetaço e determinado estará que o cidadão não pode trabalhar, que as empresas não podem produzir.
Curiosamente, no entanto, a galera vibra nas arquibancadas. É como se o menino das argolas, a própria personificação da certeza, a definição exata de estabilidade, caísse, falhasse — e a torcida nacional comemorasse o tombo como um gol do Pelé. Claro. Um novo feriado é inveja no coração do brasileiro de outras partes e medalha de ouro no peito do carioca, quando a festa do esporte vira carnaval, micareta. Não importa se for também evidente programa de aceleração do desemprego. Depois a gente vê.
12 de agosto de 2016
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo
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