"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 4 de julho de 2015

FAZ SENTIDO USAR A BÍBLIA COMO ARGUMENTO POLÍTICO?

O título deste post me ocorreu por conta da votação da PEC da redução da maioridade penal na Câmara. Nas “justificações” da PEC, de 1993, assinada por um deputado do Distrito Federal, recorre-se ao Velho Testamento, mais especificamente ao profeta Ezequiel: “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez.18). Como alma pode ter a idade que for, a frase do profeta reforça o argumento político: assim é porque está nas Escrituras.

Com as bancadas religiosas ganhando musculatura, cada vez mais a citação bíblica temperará o debate político. Estamos prontos para o novo hábito?

Não sou uma pessoa religiosa, mas gosto de ler a Bíblia, em especial o Velho Testamento. Lendo a Bíblia – ou uma versão, pois há diferentes traduções em circulação pelo Brasil – me ocorreu que a ela devemos muito da forma como estruturamos (no Ocidente cristão, ao menos) nosso pensamento, linguagem, valores.

Ainda me recordo, tempos atrás, de debater (amigavelmente) com um colega de trabalho que era evangélico, sobre um determinado trecho do Êxodo (3:14). Nesta passagem, Moisés ouve de Deus a frase que deve dizer aos filhos de Israel, para que estes o identifiquem como seu enviado: “Eu sou aquele que serei”.

A frase me intriga até hoje. Mas havia ainda outro elemento. Na minha Bíblia, que era traduzida do grego e do hebraico, a frase de Deus era uma, e na do meu amigo, cujo texto originava-se do latim, as palavras eram outras. “Aquele que Serei” virava, na versão dele, “O que Sou”. Sou e Serei sugerem sentidos distintos, ao menos para leitores leigos, como eu.
Se é assim, como tomar o texto bíblico ao pé da letra?

Muitos anos depois dessas conversas com o colega de trabalho, me deparei com o texto bíblico novamente ao estudar a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos. Descobri que o texto da Bíblia foi intensamente utilizado nos EUA do século XIX tanto por abolicionistas como por defensores da escravidão. Diferentemente do Brasil, que aboliu a escravidão em 1888 após tirar do sistema todo o ganho (acúmulo de riquezas) possível, nos EUA esta foi extinta em 1865 na sequencia de uma guerra civil na qual morreram 500 mil pessoas.

As Escrituras foram utilizadas pelos dois lados do campo de batalha. Se o argumento abolicionista nos EUA ganhou força nos púlpitos, a partir da pregação de metodistas e quakers (centrados em virtudes morais), os escravistas, por seu turno, utilizaram também a Bíblia para argumentar a favor da escravidão. O exemplo de que Deus sancionara a escravidão estava no Velho Testamento, 

particularmente na figura de Cam, filho de Noé. O autor angolano Ruy Duarte de Carvalho detalhou a origem desse argumento bíblico a favor da escravidão:

“Se embriagou, Noé, e adormeceu, descomposto, dentro da sua tenda. E seu filho Cam o viu assim e falou disso, a rir, a Sem e a Jafé, seus irmãos mais velhos. Os quais se muniram então de um pano e entraram na tenda às arrecuas para cobrir, sem ofendê-la, a nudez do pai. Depois de acordar e de vir a saber como se tinha comportado Cam, seu filho benjamin, Noé amaldiçoou-lhe a descendência: será servidora e escura” (extraído do livro Desmedida, página 153).

Em textos pró-escravidão nos EUA esta era descrita como uma maldição (“curse”) imposta por Deus a Cam e sua descendência, os negros. Se a escravidão está na Bíblia sancionada por Deus, assim é, argumentavam os escravocratas.

Há 150 anos a Bíblia dos escravocratas perdeu, venceu a outra. Seja como for, sem Deus não haveria América (até hoje). E no Brasil?

04 de julho de 2015
Rogério Jordão

Nenhum comentário:

Postar um comentário