"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 5 de março de 2014

A ÚLTIMA VEZ QUE CHOREI EM MADRI


 Que o homem é um ser que chora, isto não se discute. Enunciada assim abstratamente esta evidência, até mesmo solenes pensadores não se pejam ao admiti-la. O problema surge quando passamos a conjugar o óbvio nas demais pessoas: eu choro, tu choras, nós choramos. Humanos, enunciamos sorrindo esta verdade em tese, o duro é ter de confessá-la na prática. Como não vejo, nesta altura da vida, maiores razões para mentir às gentes ou a mim mesmo, admito sem prurido algum de pudor: choro, sim. E daí? Pela Espanha, chorei antes mesmo de pisar sua geografia.

Meu primeiro nó na garganta terá ocorrido há mais de cinco décadas, quando sequer sonhava que um dia viveria em Madri. Foi talvez naquele salão solene, cheio de poeira e silêncio, onde funcionava a Biblioteca Municipal de Dom Pedrito. Ali mergulhei no Quixote, livro mais virulento do que se imagina, quando cai nas mãos de um adolescente.

Até hoje não consigo evocar sem um arrepio anterior – cuja intensidade depende de mais ou menos vinho bebido antes da leitura – aquela manhã gloriosa em que sai a desfazer tortos aquele homem nutrido a sonhos. Mais tarde, não sei se mais emotivo ou mais vivido, comecei a arrepiar-me já na primeira frase do livro: En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme... Quando o homem mais sublime que produziu a Espanha não quer nomear o berço de seu personagem, podemos imaginar como lá foi tratado. Hoje, sabemos que o lugar não nomeado é Argamasilla de Alba, onde o coletor de impostos Miguel de Saavedra Cervantes foi posto na prisão e, para ventura de todos os loucos e sonhadores, nela concebeu seu herói.

Não menos me comove o auto-retrato que de si faz Cervantes, no prólogo a Novelas Ejemplares, onde lamenta seus dentes, ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y esos mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros. Também glorifica sua mão perdida em Lepanto, herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los passados siglos ni esperan ver nos venideros. Ali está o homem, mutilado pela vida, mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Mais tarde, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!

Muito antes de pisar solo espanhol, a Espanha já mexia com minhas emoções. Ao aportar em Barcelona, antes mesmo de descobrir as Ramblas, um monumento me tocou fundo, o de Colombo de braço em riste, apontando para o Sul. Duvido que o genovês tenha sido assim teatral no dia de sua partida. Mas o gesto é perfeito. É convite, desafio, ordem. Daquele gesto nascemos.

Terá sido esta ordem que fez Don Pedro de Ensoategui, magro e esguio como o Quixote, atravessar o Atlântico, desertar do exército espanhol a serviço nas colônias do Prata e dar origem à cidade onde em minha adolescência descobri Cervantes. Don Pedrito, assim chamado por contraste com sua magreza e altura exageradas, era contrabandista. Embora hoje não lide com bois ou cavalos, me considero digno continuador de seu ofício. Literatura sempre foi contrabando, em ambos os sentidos da palavra, seja como tráfico de idéias, seja como atividade contra os bandos vigentes.

Madri. Pisei suas ruas e avenidas pela primeira vez há quase duas décadas, quando a cidade ainda não conseguia competir com o charme de Barcelona. A Espanha vivia ainda sob Franco e os jornais como as pessoas primavam pela prudência ao expressar-se. Cinema e teatro sobreviviam submetidos a uma rígida censura e os intelectuais, com medo de discutir a história presente, encerravam-se em estudos filológicos. Culinária à parte, Madri era então uma cidade assexuada, sem tempero. Fora dos tablaos de flamenco, não tive então maiores comoções.

Voltei a visitá-la em 86. Os nomes de Franco e de seus generais haviam desaparecido das ruas e mapas. Madri já era, sem favor algum, a capital mais viva, insone e histérica de toda Europa. Nem Paris, nem Roma, nem Berlim poderiam contestar-lhe tais títulos. De novo o famigerado nó na garganta. Não em função de transportes estéticos, nem da alegria ambiente. Naquele dia, Madri inteira chorava. Estava sendo sepultado Enrique Tierno Galván, el Viejo Profesor.

Nada tinha a ver com o homem. Diga-se de passagem, sequer o conhecia. Mas ao ver aquela massa unânime, cerca de um milhão de pessoas cercando a fonte de Cibeles e derramando-se pelas ruas adjacentes, os madrilenhos comovidos, erguendo o punho à passagem do féretro, gritando entre lágrimas "Alcalde, presente!"... enfim, sem nada ter a ver com o peixe, chorei com os madrilenhos. Confesso jamais ter visto na vida admiração e comoção tão unânimes, aposto que em meio àquela multidão também estariam escondendo as lágrimas os mais duros etarras. Só então soube quem era El Viejo Profesor. Ou, simplesmente, V. P.

De todos os adjetivos passíveis de serem apostos ao nome professor, velho é sem dúvida o mais nobilitante. Jovem professor, por exemplo, soa a pedantismo. Enrique Tierno Galván, o sempre jovial prefeito de Madri, mereceu como poucos a comenda de Viejo Profesor. Não o conheci por seu magistério, tampouco por seus ensaios, que foram muitos. Passei a conhecê-lo e estimá-lo, depois de morto, por seus bandos, as proclamações do alcaide a seus concidadãos.

Dizia-se marxista, Tierno Galván. Creio que se enganava. Não consigo vê-lo defendendo as tiranias instaladas em nome de Marx. Seus bandos visavam, em um primeiro momento, instar os madrilenhos a zelar por sua cidade. Mas, como diz Fernando Lázaro Carreter, "é literário todo texto que atrai para sua leitura fora do tempo e da ocasião em que se escreveu. A literatura, o leitor a funda, quando julga valioso para si, para seu gozo desinteressado, um determinado escrito". Hoje reunidos em livro, os bandos do V.P. fascinam o mais exigente leitor. Viver em uma cidade cujo administrador, ao tratar do silêncio e limpeza necessários à saúde urbana, começa citando Platão ou Aristóteles, é sonho de todo homem culto. Nessa cidade, um ano mais tarde, vivi seis meses, quando Tierno Galván nela só permanecia em espírito.

Em maio de 84, perorava o alcaide a seus concidadãos:

Madrilenhos:

É velho dizer poético, com variada fortuna repetido, que com a chegada da primavera, a natureza se veste com suas melhores galas, encobrindo a magra e seca nudez do inverno com brilhantes e copiosos adornos. Mas a humana espécie, que às vezes contraria e repele o que a natura faz, longe de cobrir, descobre, em obséquio ao mais alegre, descuidado e gozoso viver ao qual o aprazível tempo convida.

Com esta prosa cordial e não isenta de humor erudito, queria o V. P. advertir visitantes e habitantes de Madri contra os excessos naturais do verão. Após alguns parágrafos em que recomenda um maior recato –pelo menos em público– a seus súditos, conclui:

Convém, por último, acrescentar ao já dito que os bons costumes pedem comedimento e mesura quanto ao destapar-se diz respeito, pois nesses lugares públicos de comum recreação e roçadura que são as piscinas, como a natura foge ao triste e apetece o deleitável, exageram-se os destapamentos sem levar em conta o decoro que cada um a si próprio deve e do respeito que a tranqüilidade dos demais merece.

Ao conclamar a população a festejar o Dia da Árvore e preservar as áreas verdes da cidade, o Velho Professor assim fundamenta seu bando:

Madrilenhos:

Sentença foi e parecer daquele grande filósofo Platão que não nasceu o homem para si só, também foi criado para o uso e utilidade de sua pátria e amigos. E todos os que pensam confirmam isto, afirmando que os homens por causa dos mesmos homens foram formados e engendrados e que nasceram obrigados a se ajudar e aproveitar uns aos outros. Pois se os filósofos muito antigos e dos primeiros tempos pela tão só luz da razão, sem ter grande experiência, nos mostram isto, que diríamos agora que durante séculos temos experimentado as vantagens da humana ajuda e companhia e as desvantagens da inimizade e do rancor, que ocultam e destróem os dulcíssimos bens do progresso.

Em outro bando, onde pede moderação nos festejos carnavalescos, Tierno Galván começa contestando Aristóteles: Madrilenhos:

Ainda contradizendo o filósofo, no segundo livro das Eticas, é preciso abandonar a velha idéia de que seja a mulher um varão minguado. Pode ser contradita sem voltas nem rodeios esta opinião com a longa experiência que ensina que vale tanto a mulher quanto o homem vale no que concerne às faculdades da inteligência. É também capacíssima nos exercícios que requerem esforço e destreza física, ao que é necessário acrescentar vivaz, imaginativa e natural aversão à melancolia, que a faz alegre e sempre disposta a tudo que requer festivo humor.

Bando vem do francês antigo ban, que podemos traduzir por edito. Daí a palavra contrabando, para designar o ato ou gesto que não obedece ao bando. Mas quando é Tierno Galván quem assim nos convida ou adverte, como fazer contrabando? Um turista distraído que, após ter jogado um papel ao chão madrilenho, leia um edito do Velho Professor, se tiver uma gota de civilidade vai sentir-se o mais vil dos seres humanos. Para que tal prefeito assim fale, é necessário uma cidade que saiba escutá-lo. Tierno Galván existiu porque Madri existe e sabe responder-lhe. Assim sendo, naquele dia em que um milhão de pessoas chorava, não seria este gaúcho quem bancaria o original.

Em 87, fiz mais um fiasco naquela ilustre Corte y Villa, como diria o alcaide. Desta vez foi um solo, não havia coro a acompanhar-me. Após ter vivido lá por mais de seis meses, aproximava-se o dia de voltar. Neste maldito dia entre os dias, ao perceber que só me restavam mais algumas horas de Madri, uma avalanche de sensações e lembranças, mais o vinho e as canções de uma tasca, começaram a roer-me a alma. Tudo era festa em torno a mim, como tudo sempre é festa em Madri, castelhanas de sonho cantavam e dançavam, o vinho aflorava à maçã dos rostos, cores se misturam a sons e odores... e escassas horas me restavam de festa. Chorei então como uma vaca, fui até o aeroporto de Barajas chorando, para pasmo de minha mulher. O taxista deve ter imaginado dramas conjugais, separação, coisas do gênero e não estava longe da verdade. Estava me separando da Espanha.


SAUDADES DOS LEITORES


Leitores perguntam-se sobre minha ausência nos últimos dias neste blog. Quem me acompanha, sabe que desde 2009 venho lutando contra um câncer na orofaringe, que insiste em recidivar. Sempre surgem nos natais, regalo a meu ver inequívoco do Cara aquele. Apesar da peste, nos últimos cinco anos, exceção feita de alguma viagem, sempre bati ponto todos os dias.

Agora, no quinto tumor, estou fazendo quimioterapia. O tratamento derruba, exaure as energias. Mexe no organismo todo. Até o roçar de cabelos me fere o rosto. Quando me reergo, nova aplicação, e tudo volta à estaca zero. Por isso, ora me ausento, ora republico crônicas passadas. O que não é um mal. São crônicas das quais nem eu já lembrava, quanto mais o leitor. E permanecem atuais. Dizia Gide: “só escrevo para ser relido”. É o que tento.

A boa nova, se boa nova há, é que na terceira aplicação meu último tumor natalino foi reduzido em 80 %. As sessões serão seis, ainda faltam duas. Aparentemente, ganho mais uma parada. Será uma vitória de Pirro. Raros escapam ilesos da peste.

Segundo pesquisas americanas, as chances de sobrevida deste tipo de tumor, extremamente letal, é de 10% em cinco anos. Não sei se já cheguei ao limiar ou se ainda vou chegar. Ou se já entrei nos 10%. Seja como for, da vida não tenho queixas. Me foi dado mais do que sonhei. Tudo que respira morre. Ao nascer começamos a morrer. Se não for hoje, será amanhã. Então, quando tiver de vir, que venha.

Medo nenhum. Apenas lástima de sair no meio da festa. O que me lembra o dia em que chorei pela última vez em Madri. Estarei me separando da vida, que é dura e bela como um diamante, generosa e cruel como às vezes são as mulheres. Mas pelo jeito não será para já. Para alegria de muitos leitores que me estimam, e impaciência de tantos outros que não nutrem exatamente o mesmo sentimento. Com algumas ausências, se a vida mo conceder – como diria Pessoa - continuarei escrevendo. Poucas coisas me alegraram tanto a vida como poder escrever sem censura, coisa que nunca pude quando trabalhei em jornais. E conversar com leitores de todos azimutes.

Assim sendo, até amanhã. Ou até qualquer outro dia.


05 de março de 2014
janer cristaldo

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