"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O CICLO SAGRADO DA VIDA

Naquela noite especial, se colocariam em círculo ao redor do fogo para ouvir os sons do pai de todos

Um monte de corpos que se mexiam e dançavam. Outros, mortos. O cheiro já adocicado da carne subia aos céus. Crianças brincavam se cobrindo de sangue enquanto velhas tentavam controlá-las. Mulheres, atarefadas, cuidavam de uma delas que, de pernas abertas, tentava pôr para fora um bebê.

Entre as pernas, líquidos escorriam e o cheiro de mulher tomava conta do bando. Alguns homens sentiam um prazer especial com isso, e queriam se aproximar dela para lamber suas pernas. O sangue de mulher tinha um gosto poderoso.

Em meio aos gritos da infeliz, outros homens se aproximavam carregando mais corpos. Estes eram vistos pelas mulheres como homens mais desejáveis, e não aqueles que tentavam a todo custo devorar a infeliz no meio das outras. Alguns olhavam para a infeliz e riam de sua agonia. Outros, menos ruidosos, faziam sinais para que os mais barulhentos se calassem e ouvissem o choro da mulher em silêncio. Havia algo de reverência neste silêncio.

Por alguns instantes, paravam diante da cena, e tudo parecia suspenso no tempo. Derrubavam os corpos no chão e quase choravam junto com ela.

Na rotina do dia a dia, aquela era uma noite especial. A vida era uma somatória de dias e noites que se repetiam. Mas aquela noite era especial. Logo, se colocariam em círculo ao redor do fogo para ouvir os sons do pai de todos. Este som desceria dos céus e encheria o espaço a volta de todos, chegando mesmo a entrar em suas cabeças. Sabiam que era a noite em que o pai de todos viria à Terra para jogar sobre ela a sua força. E eles comeriam corpos e dançariam.

Os corpos seriam despedaçados segundo a regra do pedaço mais fácil de arrancar ao mais difícil. Crianças e mulheres despedaçavam os mais fáceis, os homens, os mais difíceis. Passo a passo, aprendiam a ser inteligentes. Tal técnica, acreditavam, vinha do mesmo lugar de onde desciam o fogo e chuva. De onde descia o pai invisível do mundo.

Duas mulheres jogavam sobre o rosto da infeliz um líquido de cor ocre. Espalhavam sobre os olhos e os lábios, enquanto um som escapava de suas bocas, já quase sem dentes. As mulheres mais jovens não podiam se aproximar da infeliz. Depois de espalhar o líquido de cor ocre, lambiam os olhos e os lábios daquela que, de pernas abertas, próxima ao lugar onde seria aceso o fogo mais tarde, esperava pela noite mais importante da vida deles.

Quando o mundo começava a ficar escuro, e a cabeça da criança começava a surgir entre as pernas, fezes e urina, os gritos da infeliz subia aos céus. No alto da pedra, ali colocada pelo pai invisível, o homem maior se punha de pé. Os outros jogavam os corpos sobre os irmãos e irmãs de sangue, e os pedaços eram arrancados ao som cada vez mais alto de todos que repetiam monotonamente o mesmo grito. Em meio a eles, o grito frágil da infeliz, a mãe mais jovem entre todas se perdia.

O mesmo líquido ocre, misturado com sangue, escorria pelos lábios, enquanto o homem maior se contorcia sobre si mesmo, agora de joelhos. Por suas pernas, escorria sua bênção. Embaixo, e ao redor da infeliz, todos repetiam os gestos do homem maior, que carregava em si o espírito invisível do pai de todos.

Muitos corriam querendo lamber a bênção que escorria pela pedra. Depois de alguns instantes, ele repetia a dança, os gestos, se punha de joelhos, e a bênção escorria de novo pela pedra.

Quando o bebê, já fora do corpo da mãe mais jovem de todas, ligado a ela apenas por um cordão de carne, era carregado por uma das mulheres, o corpo da infeliz mãe mais jovem de todas era carregado pelo restante das velhas. Ambos eram arremessados para dentro do grande fogo, enquanto o restante dos irmãos e irmãs de sangue giravam sobre si mesmos.

De repente, do giro, passaram à perseguição das mulheres a sua volta (as irmãs de sangue). Estas, num misto de desejo e horror, tentavam escapar dos irmãos de sangue. Jogadas contra o chão e as pedras que enchiam o lugar, eram lançadas a condição de possíveis mães jovens dos próximos dias. Gritavam e gemiam, à medida em que eram abençoadas por seu irmãos.

  
30 de dezembro de 2013
Luiz Felipe Pondé

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