"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

NO TAXI COM MUSSA, VIAJANDO POR ISRAEL

 

 

O macaco volta à cena/E pergunta pro homem:
/Acha que valeu a pena ? (Millôr Fernandes)
 
Puxamos papo. O motorista de táxi portenho devolveu de bate-pronto e nos deu uma aula sobre a situação política e econômica da Argentina. De quebra, sugeriu uma sorveteria alternativa àquela para a qual nos dirigíamos. Mencionou um racha entre os sócios, que acabou parindo uma nova loja, “muito melhor do que essa outra”. Não era lorota. A tal dissidência era excelente e viajamos ao céu de Buenos Aires acompanhados de um precioso helado de dulce de leche.
 
Motoristas de táxi podem render ótimas histórias. Na recente viagem a Jerusalém, conheci Mussa. Íamos ao Museu de Israel e ele, falador, começou a fazer ofertas de tours que não nos interessaram. Apresentou-se como Moisés, mas, perguntado sobre o colar de contas que manuseava e o sotaque inconfundível, confirmou ser muçulmano. O Moisés era, na verdade, Mussa. Um pouco hipnotizados por sua lábia milenar, combinamos uma corrida para o dia seguinte, que nos levaria a Tel Aviv. Na hora marcada, lá estava ele. Pegou a estrada e, de repente, saiu dela, embrenhando-se numa via lateral.
 
Sequer nos perguntou se estávamos com pressa, deve ter deduzido que o que tinha para nos mostrar valia a pena. A tal via, exclusiva para veículos israelenses e vedada a palestinos (Mussa é cidadão israelense), passava entre pequenas colinas, cidades e vilarejos palestinos. De repente, estávamos ladeados por cercas e muros nos separando daquelas construções e lavouras pobres.
 
Paramos num posto de controle israelense. Militares entediados fazem um gesto, o táxi para e abre a mala. Um ritual que Mussa está habituado a enfrentar, mas que não deixa de ser constrangedor para quem está ali de passagem. Mussa vai dizendo os nomes daqueles aglomerados humanos.
Uma navalha de asfalto corta a comunicação entre eles e revela, silenciosamente, a face estúpida, humilhante e segregacionista da ocupação. Se teu veículo tem placa verde, que identifica a origem palestina, um percurso que poderia levar quinze minutos se a estrada principal tivesse livre acesso passa a consumir três vezes isso.
 
NÓS E ELES
 
No início, Mussa, carteira de identidade israelense, fala de Israel como “nós”. Aos poucos, entretanto, banhado naquela paisagem torturante, transita para um “eles” doloroso mas compreensível. No rádio, noticiário e música em árabe, ondas hertzianas geradas em Ramallah.
 
A conversa continua. Sabem de uma coisa ?, papeava Mussa, nenhum palestino pode embarcar no aeroporto Ben Gurion (o maior de Israel, em Tel Aviv).
Quando precisam viajar, são forçados a passar pela fronteira jordaniana e usar o aeroporto de Aman.
Seu tom de voz não se altera, mesmo passando uma informação que desenha o inferno cotidiano de um povo asfixiado. Resignação ? Talvez. Ele diz que não votaria nas eleições municipais do dia seguinte. Não se sente representado.
Os árabes israelenses que residem em Jerusalém costumam boicotar eleições.
 
Lá, como de resto em outros lugares, há pouquíssima integração entre judeus e árabes. Jerusalém Oriental é tão maciçamente árabe e à parte que torna risível a reivindicada “reunificação” da cidade depois da guerra de 1967. Só a violência mantém a aparência de “unidade”.
 
Chegamos em Tel Aviv. Mesmo reclamando de dor nas costas, Mussa nos ajuda a desembarcar as malas. Abraça-nos com afeto, entra no táxi e volta para suas paisagens, suas histórias, para sua vida dura.
De uma certa forma, que não percebi de imediato, inaugurou uma outra visita, que faríamos dias depois. Desta vez, rumo às colinas do Golã, território sírio ocupado por Israel em 1967.
 
Viajar ao Golã não é apenas uma aula prática de geopolítica. Depois de passar por casamatas e campos minados, chega-se ao cume, de onde, antes de 1967, os soldados sírios tinham uma visão privilegiada para atingir o outro lado da fronteira. Dali se descortina uma paisagem que, ao lado de um deslumbramento imediato, convida à revolta. Revolta pela estupidez humana.
Eu, minúscula cabeça de um prego, via quatro países separados por marcos ilusórios, tênues linhas criadas pela intolerância e pela incapacidade de compartilhar. Fronteiras artificiais, monumento imoral a diferenças plantadas pela cobiça e pelo supremacismo.
 
DIFERENÇAS ABISSAIS
 
Enquanto meu olho esquerdo fotografava o mar da Galileia, a velha Tiberíades e o charco-que-chamam-de-rio Jordão, o direito afundava em terras sírias não cultivadas e na silhueta opaca de montanhas libanesas.
Que diferenças tão abissais separam os que vivem ali ? O que impede um aldeão libanês de pegar a estrada e convidar um pastor sírio e um kibutznik israelense para um chá, um prato de hummus, uma rodada de críticas aos governos, quaisquer governos ? Tal como Mussa e o chofer portenho, não teriam histórias para compartilhar ?
 
No discurso em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura, o escritor turco Orhan Pamuk disse que escrever é “reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e da nossa literatura”.
Será que algum dia os povos daquela região se libertarão das monumentais camadas de lodo acumuladas pelas classes dominantes durante séculos e, de olhos abertos, iniciarão um processo de (re)conhecimento, armados apenas com a fome de viver, de descobrir, de iluminar ? Já fui arrogante o suficiente para responder categoricamente: claro que sim ! Hoje, não sei dizer.
 
Mexer na dor, no ódio, nas angústias, em sentimentos socialmente condenados, não é exercício banal. Visitei a sala das chamadas pinturas negras de Goya, no museu do Prado, em Madri. São cerca de duas dezenas de obras magistrais, livres das quadraturas clássicas e das amarras contratuais da nobreza. A história é a seguinte. Goya adquiriu uma propriedade nos arredores de Madri e lá ficou por algum tempo. Depois de sua morte, descobriram-se os quadros que hoje estão no Prado. Ele jamais os mostrou a ninguém.
 
São figuras e situações pintadas sem filtros embelezadores, hoje diríamos sem photoshop. Nada de poses artificiais, nada de rostos maquiados, nada de situações solenes. São velhos machucados pela vida, rituais satânicos a evocar a fragilidade humana, imagens assustadoras inspiradas na mitologia grega, rostos em transe. Parece que Goya resolveu fazer o movimento de introspecção sugerido por Pamuk. De suas entranhas expeliu demônios, terá ficado mais leve ?
Pesada está a Europa, em seus flertes recorrentes com a xenofobia, que acaba de mandar lembranças para o Felipão. Matou no peito e distribuiu botinadas a rodo.
O episódio Diego Costa, já fartamente comentado, é apenas sintoma do autoritarismo que habita a CBF. O técnico, que já foi flagrado ordenando que seus zagueiros batessem nas canelas dos adversários, ressuscita palavras de ordem da ditadura e antecipa o ufanismo programado para 2014. Jogadores de futebol são trabalhadores, com direito de buscar melhores condições de trabalho em qualquer parte do mundo. Camisa da seleção brasileira não é uniforme militar. Chuteira não é coturno.
 
20 de novembro de 2013
Jacques Gruman

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