Peregrinos que vieram para a JMJ pedem refúgio ao Brasil
- No Rio, pelo menos 38 estrangeiros que viajaram para ver o Papa já deram entrada em processo para ficar no país
- Eles alegam perseguição religiosa ou questões relacionadas a conflitos armados em seus países de origem
No corpo do serra-leonês A., de 24 anos, as cicatrizes revelam as marcas da intolerância. Aos 4 anos, ele viu o pai e a irmã mais velha serem assassinados pelos vizinhos por conta de sua opção religiosa: a família era católica. Quando fez 9 anos, A. foi levado à força para uma floresta próxima à vila onde morava, no oeste de Serra Leoa, para participar de um ritual de inicialização tribal durante o qual seu corpo foi perfurado com ganchos.
O jovem é um dos 43 estrangeiros que aproveitaram a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) para pedir refúgio ao Brasil, alegando perseguição religiosa ou questões relacionadas ao conflito armado em seus países de origem. Segundo levantamento do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), somente no Rio 38 peregrinos do Paquistão, da República Democrática do Congo e de Serra Leoa, assistidos pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Carj), já deram entrada no processo de regularização de sua estada no país. Outros cinco, que estão em São Paulo, também já pediram refúgio.
— A JMJ foi a oportunidade que tive para sair do meu país. Meu pai foi morto por ser cristão. Minha mãe, que é liberiana, saiu de Serra Leoa por medo. O que aconteceu com eles também poderia acontecer comigo — relatou o jovem.
O radicalismo dos moradores da vila onde A. viveu até a adolescência marcou a memória do jovem serra-leonês. Ele chama a floresta onde foi obrigando ainda criança a passar quatro meses realizando rituais tribais tradicionais de sua comunidade de Evil Forest, a Floresta do Diabo ou da Maldade.
— Eles nos tratavam como escravos. Não deixavam a gente dormir com o grupo que estava na Evil. Quando rasgaram meu corpo com os ganchos eu fiquei dias sagrando sem nenhum tipo de assistência — relatou o jovem mostrando as cicatrizes espalhadas pelo peito e pelas costas.
C. relata que foi cercado por um grupo que o agrediu. Ao tentar fugir do ataque, ele foi atingido por uma pedra na cabeça. A cicatriz é marca da intolerância religiosa que sofreu. O pai, preocupado com a segurança do filho, o incentivou a sair do país em busca de uma nova vida.Além da mãe, A. deixou para trás quatro irmãs e cinco irmãos.
Como ele, o também serra-leonês C. conta as agressões sofridas em sua vila, também localizada a oeste do país, por conta de ser católico. No ano passado, desobedecendo a uma ordem do pai, que também é católico, ele foi caminhar na vila durante um festival realizado na comunidade que tem cerca de 250 pessoas e onde somente oito seguem o catolicismo.
— Meu pai soube que em dezembro eles fariam algum tipo de ação contra os católicos. Ele é professor e tem o respeitos dos mais velhos, mas nós não estaríamos seguros — relatou.
Lei da blasfêmia para perseguir católicos
Enquanto as marcas dos serra-leoneses materializam a perseguição sofrida em seu país, o grupo de paquistaneses que pediram refúgio ao Brasil traz na bagagem da JMJ histórias de discriminações e perseguições. O paquistanês Z., que vivia ao sul de Islamabad com seus pais e quatro irmãos, relata as privações sofridas por ele, os familiares e amigos em sua terra natal. Ele conta que o irmão teve que largar o emprego de vendedor de peças para a indústria de armas quando descobriram que era católico. A família se refugiou na casa de parentes em cidades vizinhas, por contra da discriminação. Ele afirma ainda que já foi perseguido por autoridades locais e discriminado na busca por um emprego quando se declarou católico. O jovem, que pediu para não ser identificado, testemunhou perseguições e violência contra outros católicos de sua comunidade.
— Eles usaram a lei de blasfêmia para perseguir católicos. Casas eram invadidas, pessoas eram presas e não voltavam. Apesar da constituição (do Paquistão) afirmar que cada pessoa tem direito à sua crença, eles se utilizavam de armadilhas para dizer que os cristãos depreciavam o Islã, insultando sentimentos religiosos de outra pessoa — relatou o jovem, afirmando que em março outros católicos, que praticavam a religião com ele, foram perseguidos e apreendidos por autoridades locais.
Na casa, no subúrbio do Rio — a pedido da Cáritas e do ACNUR, nomes e localizações dos peregrinos não podem ser divulgados, pois o processo de solicitação de refúgio ainda não foi concluído —, a imagem do Papa Francisco enfeita um mural improvisado.
Lá estão cinco estrangeiros — três paquistaneses e dois serra-leoneses — dos 11 que pediram refúgio por perseguição religiosa. No total, seis peregrinos vieram do Paquistão, três de Serra Leoa e dois do Congo. Um outro grupo continua sendo hospedado por voluntários da JMJ.
A coordenadora do projeto de assistência e proteção a refugiados da Cáritas, Aline Thuller, afirma que o número de estrangeiros no Rio em situação análoga a do grupo pode ser maior. Segundo ela, há relatos, entre as pessoas assistidas pela Cáritas no Maracanã, de outros estrangeiros que não iniciaram o processo de pedido de refúgio:
— Há, sim, a possibilidade de haver mais pessoas que vieram para a JMJ e não pediram refúgio ainda. Muitos, por medo. Outros, por desconhecimento da legislação brasileira sobre o tema.
O Brasil é signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos e é parte na Convenção das Nações Unidas, de 1951, sobre o Estatuto dos Refugiados e do seu Protocolo, de 1967. O país promulgou, em julho de 1997, a lei de refúgio 9.474/97, contemplando os principais instrumentos regionais e internacionais sobre o tema.
Ajuda de custo e documentos novos
A lei garante documentos básicos aos refugiados, incluindo carteiras de identidade e de trabalho, além de garantir a liberdade de movimento no território nacional e outros direitos civis. O processo que avalia os pedidos de refugiados demora, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, cerca de oito meses. Primeiro, eles dão entrada no pedido na Polícia Federal. Em seguida, são encaminhados à rede da Cáritas para receber ajuda jurídica e social. No período de avaliação, que passa também pelo Ministério da Justiça, eles recebem auxílio de R$ 300 e documentos provisórios, como carteira de trabalho e CPF. A Cáritas faz ainda o acompanhamento social do caso e oferece cursos de português e artesanato aos atendidos.
Os pedidos de refúgio com a alegação de perseguição religiosa representam, para o representante do Acnur no Brasil, Andrés Ramires, um desafio às autoridades brasileiras:
— Faremos um acompanhamento detalhado desses casos, pois o pedido de refúgio, devido a opções religiosas, é uma questão complexa de ser decidida. Claramente, há épocas em que o número de refugiados motivados por questões religiosas é maior. Numa avaliação preliminar é possível afirmar que a JMJ influenciou diretamente no aumento desses casos no Brasil.
Em meio à dor da separação dos familiares, a esperança de recomeçar a vida é o que os mantêm firmes na decisão de pedir refúgio ao Brasil. Todos são unanimes: a razão de quererem ficar aqui é a liberdade de poder se manifestar.
— Não me perguntam o que eu sou, o que eu penso, em que eu creio. Aqui, as pessoas são receptivas. Elas não nos julgam por conta de nossas escolhas — afirma o paquistanês Y.
O Brasil possui cerca de 4.200 refugiados reconhecidos pelo governo federal, originários de mais de 70 nacionalidades diferentes. Em 2013, cerca de 300 novos pedidos já foram aceitos pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), sendo a maioria composta por refugiados originários da Síria, da Colômbia e da República Democrática do Congo. Em todos os casos, por conta de conflitos militares em seus países de origem.
24 de agosto de 2013
RENATO ONOFRE - O Globo
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