"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 25 de outubro de 2015

LIÇÕES DO IMPEACHMENT

Nunca se falou tanto de impeachment nesta quadra da vida em que até as palavras já não gozam de intimidade. Nem elas conseguem ficar a sós consigo mesmas. Os paparazzi somos todos nós e é num piscar de olhos que transitamos das pessoas para os dicionários e vice-versa. Basta alguém riscar um fósforo na direção de outrem, ou de algo, para um terceiro chegar ali colado e já de capinzal a tiracolo. 
O fogaréu é em tempo real, porque online. Paciência! Paciência, e se as coisas se nos dão assim como um imperativo kantiano, que tiremos o melhor proveito coletivo delas. Que nos transformemos de paparazzi em cidadãos cada vez mais partícipes da arquitetura do nosso próprio destino.

É o que podemos fazer em tema de impeachment, justamente. Ele está ali bem focado, bem postado, bem centrado nos artigos 85 e 86 da Constituição para um eventual uso. Não é golpe falar dele. Nenhum tema da Constituição, nem do Direito em geral, ou da vida em sua universalidade mesma se pode blindar quanto à respectiva discussão a qualquer momento. Em qualquer lugar. Sob qualquer assistência ou protagonização humana. Golpe é tão somente quando se dão pedaladas na Constituição para aplicar o instituto a ferro e fogo. De qualquer jeito. Sem que estejam presentes os respectivos pressupostos. No pior estilo oportunista que se contém nesta frase de Epicuro (341-270 a.C.): “Quando a tentação chegar, ceda logo antes que ela vá embora”.

Não é assim de afogadilho que o tema se equaciona. Até porque ele se põe como a figura de Direito mais “externa corporis” das relações entre o Poder Legislativo da União e o presidente da República. Nem mesmo a berrante voz da crise econômica justifica um pular de cerca da nossa Lei Fundamental. Uma Lei Fundamental do mais alto merecimento intrínseco, ajunte-se, porquanto consagradora da democracia como o princípio dos princípios jurídicos; ou seja, da democracia como o valor-teto, o valor-continente e o valor-síntese de todos os outros. 
A instituição que tem por conteúdos a República e a Federação brasileira, nessa ordem (o Brasil é uma República Federativa, e não uma Federação Republicana). Uma Constituição, em suma, que desde o seu artigo 1.º define o Brasil como um “Estado Democrático de Direito” porque somente a partir desse fundamento é que se pode legitimamente subir ao podium de “uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I do artigo 3.º). Fins legítimos a alcançar por meios igualmente legítimos.

Esta a primeira lição. A lição da compatibilidade entre o Estado Democrático de Direito e o tema do impeachment de quem esteja como presidente da República. Seja o impeachment enquanto processo de acusação e julgamento, seja o impeachment enquanto pena ou resultado condenatório. Aqui, a implicar “perda do cargo, com inabilitação, por 8 anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (parágrafo único do artigo constitucional de n.º 52). Ali, a pressupor um devido processo legal do tipo substantivo ou verdadeiramente fiel às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Salto para o que me parece a segunda grande lição. A lição de que não basta a eleição popular como forma de legitimidade da investidura no cargo de presidente da República brasileira. Tal eletividade se traduz numa das fases da legitimidade política; isto é, caracteriza a fase da legitimidade originária ou no ponto de partida das coisas. 
A legitimidade que os narradores das corridas de automóvel chamariam de grid de largada. O que não elimina jamais o percurso do mandato presidencial, destinado à concreção de um segundo tipo de legitimidade: a legitimidade pelo desempenho. A legitimidade pelo exercício. A legitimidade pela não incidência nos “crimes de responsabilidade”. 
Tipologia de delitos a que vai corresponder um atestado de inadaptabilidade do chefe do Poder Executivo da União à ordem constitucional. Que não é senão um estilo de governo insultuoso ou afrontoso ou acintoso da Constituição mesma. 
Donde o citado artigo 85 falar dos crimes de responsabilidade como “os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição”. Contra a Constituição, sim (este o bem jurídico protegido), especialmente pelos sete conteúdos que o mesmíssimo artigo 85 lista por um modo inelástico.
Na base do mexeu com eles, mexeu comigo...

Mas não é só por crimes de responsabilidade que a nossa Constituição possibilita a desinvestidura punitiva do presidente da República. Ela vai mais longe. Faz-se mais rigorosa no aviamento de antídotos contra as eventuais malfeitorias do chamado primeiro mandatário do País. Mais severa no aperto do cerco em face de quem detém uma tríplice chefia: a da administração pública, a do governo e a do Estado. 
Donde as seguintes passagens normativas: a) impugnação do próprio mandato, por motivo de “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude” (§ 10 do artigo 14); b) “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos”, tanto quanto em ação cível de “improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4.º” (incisos III e V do artigo 15). As duas últimas destituições como consequência do link operacional que o mesmo artigo 15 estabelece entre condenação judicial e suspensão dos direitos políticos.

Estamos bem servidos de normatividade constitucional, portanto. Mas uma normatividade que diferencia os institutos. Crime de responsabilidade é uma coisa, as demais ilicitudes são outras. Cada qual com o seu peculiar regime jurídico, inclusive no plano da lei, embora os resultados possam coincidir em certa medida. A hora é de certificar a nossa maturidade jurídica. Não a de misturar alhos com bugalhos, precipitadamente. Distinção que Martin Luther King bem soube fazer quando disse que: “Não me interessa conhecer as suas leis, porém os seus intérpretes”.



25 de outubreo de 2015
Carlos Ayres Britto

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