"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 28 de março de 2015

DESIGUALDADES DISTRIBUTIVAS NA AMERICA LATINA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA - SEMINÁRIO INTAL-BID


Desigualdade na América Latina: lições da história


Quais são os ensinamentos que uma visão de longo prazo sobre a desigualdade na América Latina nos oferece? [1]Sem dúvida muitos, e vários deles de grande utilidade para pensar os desafios do presente. Estas são algumas das conclusões decorrentes da leitura das apresentações realizadas no seminário “A inequidade na América Latina a longo prazo”, organizado pelo BID, pelo Banco Mundial e pela Cepal no auditório do Instituto para a Integração da América Latina e do Caribe (BID-Intal) em Buenos Aires, de 3 a 5 de dezembro de 2014. 

Entre outras contribuições, a perspectiva temporal nos permite observar o peso que variáveis como a educação, a política tributária, a propriedade da terra, a configuração das elites, as diferentes estratégias econômicas e os fatores demográficos e naturais tiveram sobre a equidade, ao mesmo tempo que nos permite discernir o que aconteceu com as desigualdades de classe, gênero e étnicas ao longo da história. 

Neste artigo, baseado nas principais descobertas de um grupo de trabalhos apresentados no seminário, em primeiro lugar se fará referência à controvérsia central sobre a história da desigualdade da região e às mais recentes contribuições apresentadas a esse respeito. 
A seguir, será analisada em perspectiva temporal a evolução das desigualdades de gênero e étnicas. E, por último, se abordará um exemplo de trajetória de longo prazo da desigualdade, finalizando o artigo com algumas reflexões sobre o uso da história para ajudar a pensar os desafios do presente.

A desigualdade latino-americana é uma persistência histórica?

Se há consenso sobre o aumento registrado nas desigualdades de renda nas últimas décadas do século 20 na região, à medida que olhamos mais para o passado, as posturas divergem. De todo modo, a perspectiva mais aceita entre os historiadores é a que remete as inequidades à época da Colônia. 

Em termos gerais e com nuances entre os diversos autores, essa perspectiva se baseia no caráter extrativo da economia colonial, nas restrições ao desenvolvimento econômico que as coroas espanhola e portuguesa impuseram às suas colônias, na estrutura da propriedade da terra e na poderosa configuração de elites locais que depois se cristalizou nas repúblicas nascentes em forma de instituições, estrutura de classes e coalizões de poder que perpetuaram e reforçaram as desigualdades anteriores. 

A apresentação de Luis Bértola no seminário aprofundou-se nessa linha argumentativa. Ele defendeu a necessidade de observar a desigualdade passada não só com relação à renda, mas também em uma perspectiva ampla, incluindo a estrutura social da colônia, em particular, a existência de escravos e de outras formas de subordinação e servidão, restrições à cidadania e ao acesso à terra, entre outras dimensões. 

E, embora estes elementos pudessem não se refletir na renda, sem dúvida constituíam formas de desigualdade profundas. Por outro lado, assinalou que o problema da região a partir do século 19 foi principalmente a volatilidade econômica, já que os avanços e os retrocessos do desenvolvimento representaram profundas flutuações em termos de desigualdade.


Além disso, destacou a necessidade de revisar a relação entre crescimento e desigualdade, afirmando que, pelo que parece, para crescer a região teve que gerar desigualdade, mas que, por sua vez, essa desigualdade foi uma base frágil para conseguir um crescimento sustentável.
Passando para os casos nacionais, a título de exemplo, a apresentação de Jorge Gelman e Daniel Santilli sobre Buenos Aires da colônia até o fim do século 19 seguiu em termos gerais essa perspectiva de desigualdade com raízes históricas.
Uma perspectiva diferente foi sustentada por Jeffrey Williamson na sua apresentação (Gráfico 1).

A partir da construção de uma série de dados de longa duração (os primeiros datam do século 15) ele afirma que nos primeiros anos da conquista a produção de excedente era muito baixa para produzir desigualdades expressivas.
Esta aumenta só a partir do século 17, mas até fins do século 19 se mantém abaixo da inequidade registrada nesse momento na Europa e nos Estados Unidos. Depois da Primeira Guerra Mundial é que a região começará a elevar seus níveis de inequidade, ao mesmo tempo que a Europa começará a diminui-los.

A pergunta é o que aconteceu depois de 1910 que levou a esse aumento da desigualdade na região que persiste até hoje. A apresentação de María Gómez León, a partir de uma visão metodológica nova sobre a estrutura de classes do Brasil de 1839 a 1950, pode se inscrever nesta linha argumentativa. Seu trabalho identifica períodos da história brasileira caracterizados por um crescimento da classe média junto com um declínio nos níveis de desigualdade, particularmente no final do século 19 e início do 20. Assim, a imagem tradicional de um Brasil caracterizado por uma estrutura social polarizada é questionada.

Gráfico 1. Estimativa da tendência à desigualdade na América Latina, 1491-1929

Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Jeffrey Williamson.

                                    CLIQUE PARA AUMENTAR


A apresentação de Pablo Astorga sobre a desigualdade funcional na América Latina entre 1900 e 2011 também leva à revisão de certas ideias sobre o passado. O autor constrói uma série de dados novos sobre salários reais comparável a longo prazo para seis países da América Latina[2] e faz cálculos próprios do coeficiente de Gini entre grupos ocupacionais. A partir deles, afirma que não se verifica um padrão comum de evolução da desigualdade na região a partir do século 19; na verdade, registram-se diferenças expressivas nos padrões nacionais no final da primeira industrialização e durante meados do século 20.
Pelo contrário, assevera que sim parece haver um dado comum na tendência a uma desigualdade crescente a partir de 1960, que teve seu auge no final do século passado. Em linhas gerais, o quadro apresentado não pareceria ser coerente com a hipótese de uma desigualdade alta e relativamente constante no século 20, dado que se observam diferenças significativas não só entre países, mas também em cada um deles ao longo do tempo.
Um dado interessante para os desafios do presente é que o autor não encontra em nenhum país uma fase de concomitância de um aumento sustentável da participação do salário acompanhado de uma redução na dispersão salarial.


Em outras palavras, quando a participação do trabalho na distribuição da riqueza sobe também teria aumentado a desigualdade entre os diversos trabalhadores. Sua contrapartida lógica, particularmente no final do século 20, é a sincronia entre um aumento no salário real médio e um aumento da dispersão. Como corolário, conclui que o que parece estar faltando na história econômica dos seis países analisados são episódios impulsionados por dinâmicas de mercado de um aumento do salário médio articulado com uma redução da dispersão salarial.

Trata-se de um tema de grande importância, já que esta apresentação estabelece uma relação da distribuição primária, entre capital e trabalho, com a secundária, entre indivíduos e domicílios. E, com efeito, a redução da desigualdade de renda exige uma melhora tanto de uma quanto da outra, e essa sincronia também não se percebe no presente.

A apresentação de Leticia Arroyo Abad junto com Peter Lindert também expõe conclusões novas. Os autores realizaram o que chamaram de o primeiro estudo multipaís sobre como os governos latino-americanos utilizaram os impostos e o gasto público para atuar sobre a distribuição da renda. Para isso, construíram uma série histórica para seis países latino-americanos,[3] em combinação com estudos recentes sobre os padrões de redistribuição fiscal do século 21.
Da apresentação se deduzem, entre outros, os seguintes ensinamentos. Em primeiro lugar, eles sustentam que o gasto social se acelerou no pós-guerra. Depois, mostram que na América Latina a redistribuição ocorre basicamente dos jovens para os idosos, principalmente por meio do sistema de pensões.
Em terceiro lugar, eles afirmam que desde a Independência a região investiu pouco em educação e infraestrutura. Em quarto lugar, assinalam que, em termos gerais, a progressividade foi escassa na região. Em quinto, demonstram que o investimento humano em capital implicou maiores – embora mais dilatados - benefícios do que as políticas de transferência de renda; e, por último, afirmam que o gasto social na região, além de volátil, foi pró-cíclico.

Desigualdades de gênero e raça em perspectiva histórica

A evolução ao longo do tempo das desigualdades de gênero e étnica ou racial, como foi chamada em várias apresentações, foi outro dos temas do seminário.

Silvana Maubrigades apresentou uma análise realizada junto comMaría Magdalena Camou sobre a distribuição da renda e da participação feminina no mercado de trabalho na América Latina desde o início do século 20 (Gráfico 2). O trabalho afirma que a desigualdade de gênero em matéria de renda se expressa basicamente de duas formas: por meio de uma entrada mais restrita e tardia das mulheres no mercado de trabalho e por meio da existência de uma brecha salarial em comparação com os homens.

A análise conclui que existe uma “path dependence” (às vezes traduzida como “dependência histórica”) importante em nível nacional no tocante à evolução do mercado de trabalho, porque os países com maiores níveis de educação e de participação feminina no mercado de trabalho (como a Argentina e o Uruguai) são também os de menor desigualdade de gênero na matéria. Concluem, em termos gerais, que o nível de desenvolvimento de um país é previsor do nível de participação feminina no mercado de trabalho.

No entanto, o estudo mostra que a formação não tem resultados lineares em termos da redução da desigualdade, visto que nem sempre se correlaciona com um aumento da participação feminina no mercado de trabalho nem com uma redução da brecha salarial. Esta conclusão é também importante para o presente: diversos trabalhos mostram que nem todas as desigualdades diminuem de forma articulada e, em particular, que a nossa região foi mais equitativa na distribuição de bens educativos do que na distribuição da renda e que essas disparidades continuam no presente.

Gráfico 2: Inequidade global e a brecha de gênero

Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Silvana Maubrigades.

                              CLIQUE PARA AUMENTAR


Nesse mesmo sentido, mas relativos a grupos étnicos, encontram-se as conclusões apresentadas por Enriqueta Camps junto com Stanley Engerman. Esta apresentação visou analisar o impacto da raça e da desigualdade na formação de capital humano nos séculos 19 e 20 na América Latina.
Destaca-se que durante o século 20 a educação tornou-se de massa na América Latina, pelo menos nos níveis fundamental e médio, ao mesmo tempo que a desigualdade educativa se reduziu, incorporando as mulheres e pessoas de todas as raças. No entanto, também se destaca que o impacto da queda do coeficiente de Gini educacional não foi notado sobre o Gini de renda até a década de 1990.

Uma abordagem sobre este tema no caso do Brasil foi realizada pela apresentação de Justin Bucciferro. O autor parte da constatação de que durante a última década se evidenciou uma importante redução da desigualdade racial no Brasil com relação aos níveis de emprego e renda, do alfabetismo e da educação.
A partir daí, ele se pergunta se o declínio faz parte de uma tendência de longo prazo ou se responde a fatores estritamente conjunturais. O trabalho contém evidências sobre a desigualdade racial no Brasil desde 1827 até hoje, concentrando-se na análise da expectativa de vida, nos níveis de analfabetismo, na quantidade de anos de escolaridade e nas rendas médias mensais, desagregados por grupos (negros, pardos, brancos, asiáticos e indígenas). A evidência o leva a concluir que, em termos gerais, houve uma redução da desigualdade no Brasil ao longo do tempo, e que esta tendência é anterior às últimas décadas (Quadro 1). No entanto, ele acrescenta que o progresso para uma maior igualdade entre os grupos étnicos foi errático e teve resultados diversos segundo o grupo analisado.

Quadro 1: Expectativa de vida ao nascer (anos) por raça, 1950-2008
19501960198019912008
BRANCA 47,5 54,7 66,1 70,8 73,1
NÃO BRANCA 40,1 44,7 59,4 64,0 67,0
DIFERENÇIA 7,4 10,0 6,7 6,8 6,1

Fonte: apresentação de Bucciferro.

Estas pesquisas mostram, entre outros elementos, além da persistência de desigualdades de gênero e entre os grupos étnicos, que os avanços não são lineares no tempo nem em todas as dimensões. Talvez seja útil trazer como referência um aprendizado dos estudos sobre estigmatização que apontam o caráter pertinaz e multiforme dos estigmas: quando parecem terem sido eliminados em uma dimensão, concentram-se, reaparecem ou se expressam em outras.
Sem dúvida com as desigualdades de gênero e de raça acontece algo similar: os avanços em certas áreas nos obrigam a ficar mais atentos para detectar as persistências ou ainda o reforço de inequidades em outras.
O aumento da participação feminina no mercado de trabalho, por exemplo, não necessariamente implica uma redução das brechas de renda ou, mais ainda, estaria acarretando uma maior sobrecarga do tempo de trabalho doméstico e extradoméstico das mulheres. Portanto, neste caso, se ganha em uma dimensão da desigualdade, mas se perde em outra.

Desigualdade a longo prazo: um caso de padrão cíclico

Um resultado interessante é a observação de um padrão cíclico na desigualdade de renda a longo prazo no caso do Chile (Gráfico 3). Javier Rodríguez Weber analisou na sua apresentação a relação entre crescimento econômico e desigualdade levando em conta a incidência tanto dos fatores institucionais quanto das forças de mercado em três períodos da história desse país de 1850 em adiante.
Entre suas descobertas, mostra que nem sempre o crescimento implicou desigualdade, mas que o fundamental é o tipo de crescimento, mostrando que a curva de Kuznets (a hipótese de que toda fase de crescimento provoca um aumento inicial da desigualdade) não é de jeito nenhum uma lei válida para todos os países nem para todos os estilos de desenvolvimento.

Centrado depois no período 1938-1973, no qual houve uma grande queda na desigualdade, encontra o peso positivo da regulamentação estatal da economia visível na promoção da industrialização e em uma forte política de recomposição do salário mínimo real. Por último, estuda o período 1973-2009, assinalando que até 1989 (fim da ditadura de Pinochet) se produz um expressivo aumento da desigualdade, devido a uma forte redistribuição a favor das elites, produzida a partir de uma queda dramática do salário real e da abertura do que o autor denomina novos terrenos para a extração de lucros, referindo-se basicamente à privatização da educação e da segurança social.

Gráfico 3. A "melhor estimativa" de desigualdade na distribuição de renda no Chile. 1850-2009. Coeficiente de Gini.

Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Rodríguez Weber.

                        CLIQUE PARA AUMENTAR

Encerramento

Este artigo se propôs a apresentar alguns dos aprendizados decorrentes de uma perspectiva de longo prazo sobre a desigualdade na região. Em primeiro lugar, os trabalhos sugerem que as controvérsias sobre a desigualdade não estão sanadas.
Parece que se encaminha para uma maior diversificação de perspectivas ou, possivelmente, para uma suspensão da possibilidade de uma visão única para todos os países e períodos, em virtude dos novos estudos sobre os diversos casos nacionais, da maior luz sobre períodos que haviam ficado até agora sob certa penumbra e, sem dúvida, das novas variáveis e indicadores que sejam levados em conta para captar a desigualdade, principalmente se for adoptada uma perspectiva multidimensional da mesma.

No entanto, hoje já se conta com uma grande quantidade de dados, construção de séries históricas e indicadores diversos que constituem uma fonte de informação e conhecimentos de grande utilidade para enfrentar os desafios do presente. Sabe-se bastante mais sobre o que teve peso tanto nas fases de redução quanto de aumento da desigualdade de renda, em especial entre indivíduos e pessoas.
Temos certezas com relação ao fato de que as políticas e as instituições contam e que é impossível explicar a persistência da desigualdade sem colocar no centro da análise a dinâmica dos grupos sociais, em particular das elites.

A história dos países também questiona certas ideias: nem todo crescimento gera desigualdade, já que isso depende do estilo de desenvolvimento, e tampouco a desigualdade melhora necessariamente em todas as dimensões de forma articulada e inexoravelmente.
Além disso, incorporam-se outras perspectivas sobre a distribuição, por exemplo, a que observa as transferências produzidas entre gerações, uma dimensão pouco presente nos estudos dos nossos países.

Em suma, tenta-se responder à interrogação inicial sobre as contribuições da perspectiva de longo prazo com algumas reflexões sobre os muitos ensinamentos que a perspectiva de longo prazo pode nos deixar; e também convidar os leitores a encontrar suas próprias respostas nestas e nas demais apresentações do seminário.


28 de março de 2015
in diplomatizzando


[Para melhor visualização, veja o link de origem:http://events.iadb.org/calendar/eventDetail.aspx?lang=es&id=4722]

Nenhum comentário:

Postar um comentário