Foi marcado para 15 de março, nessa jornada nacional de protesto contra um governo que rompeu relações com os governados, com a razão e com a realidade, um encontro entre o Brasil e a seguinte pergunta: se você não utilizar a liberdade de expressão para criticar o governo do seu país, então para que raios ela serve?
Há um bom tempo, ou desde sempre, os atuais donos do poder no Brasil se esforçam dia e noite para impor à população uma tramoia perversa.
A liberdade, dizem, só serve quando é usada para concordar com eles, ou para tratar de algum assunto que não os incomode; quando alguém se vale do direito de livre expressão para discordar do ex-presidente Lula, da presidente Dilma Rousseff e do PT, está praticando um delito.
Essa liberdade domesticada, inofensiva e sujeita à aprovação prévia das autoridades, que o governo quer empurrar à força para cima do país, não é liberdade nenhuma – não serve para nada, a não ser para ele mesmo.
As manifestações de 15 de março estão destinadas a esclarecer quais são os direitos que estão atualmente em vigor – os que só podem ser exercidos mediante autorização do Palácio do Planalto e do Instituto Lula, ou os que são garantidos pela Constituição brasileira para todo cidadão que se manifesta dentro da lei.
É melhor deixar em paz os números relativos ao tamanho das demonstrações – mais ou menos pessoas na rua não alteram em nada o fato de que o Brasil vive as primeiras manifestações genuinamente populares desde o movimento das Diretas Já, há mais de trinta anos, e de que o governo está se mostrando perfeitamente incapaz de dar uma resposta decente a isso.
Este é o fato real – os descontentes existem, e diante deles a trindade Lula-Dilma-PT tem provado a cada dia, pelo que diz e pelo que faz, que não consegue entender como funciona uma democracia.
O alicerce do raciocínio que levam a público, e em cima do qual vão amontoando todas as suas reações, é o seguinte: a manifestação de discordância é perigosa. É um pensamento ruim.
Sempre que um governo dá a si próprio o direito de silenciar quem se opõe a ele, só tem um caminho pela frente: ir tomando decisões cada vez mais repressivas, pois o ato de repressão praticado hoje só poderá ficar de pé se for sustentado pelo ato de repressão praticado amanhã. É a receita das tiranias.
É claro que o atual governo brasileiro não tem meios práticos para criar uma ditadura no Brasil; Lula e seus dependentes sabem que não tem. Mas, ao persistirem na sua estratégia atual, estão dividindo cada vez mais o país em dois lados, e tratando como inimigo o lado que discorda.
Tenta-se vender, no fim das contas, a falsificação da virtude. As forças que controlam o governo insistem em dizer que são as únicas representantes do bem no Brasil, por terem ganhado as quatro últimas eleições presidenciais; quem se opõe a elas, portanto, é o mal. Ganhar quatro eleições seguidas é enorme.
Quantos regimes, pelo mundo afora, podem apresentar um desempenho igual? Mas Lula, Dilma e o PT agem como se isso lhes tivesse dado aprovação eterna, e como se o povo já tivesse decidido que eles devem ficar lá para sempre – qualquer outra possibilidade é considerada um ataque à vontade popular, e qualquer tentativa de alternância do poder recebe o carimbo de “subversão”.
Afirmam sem parar que os descontentes, a começar pelos que se acham no direito de ir a manifestações de rua, são “golpistas” que babam de raiva. Comportam-se como a ditadura, que via em toda expressão de desacordo uma conspiração de “comunistas”.
É difícil achar um conjunto de provas que atestem tão claramente essa opção totalitária como as declarações que o PT faz em público, com o suporte de sua máquina de propaganda remunerada ou voluntária. O esforço mais repetido nessa catequese é o sequestro da palavra “popular”.
Ela só tem validade, segundo Lula, quando é aplicada a quem está a favor. As manifestações do dia 15, por exemplo, não são “populares”; são coisa privativa de gente rica, ou de um ou outro boçal que não sabe o que é bom para ele próprio. O panelaço do domingo anterior, armado livremente pela internet nas 24 horas precedentes, foi descrito como uma brincadeira desses mesmos ricos no terraço de seus apartamentos de luxo – inclusive em São Bernardo, Vila Velha e outros notórios redutos da alta burguesia.
(A propósito: ressuscitou-se a palavra “burguês”, em desuso desde os anos 60 do século passado.) O governo nega a possibilidade de que exista fora da classe “AAA” algum brasileiro indignado com a corrupção. Também não admite que um cidadão do povo possa ter valores morais; moralidade, na filosofia do PT, é apenas “moralismo”, um vício que só ocorre nas mais altas esferas da sociedade. Os 51 milhões de eleitores que votaram em Aécio Neves e contra Dilma, na última eleição presidencial, não fazem parte da população do Brasil.
Nada disso altera em um grama o que acontece no mundo das realidades. Pouco depois do panelaço das elites, a presidente viu-se enxotada por um temporal de vaias do percurso que deveria seguir durante sua visita a uma exposição em São Paulo; a cada dia fica mais complicado para Dilma andar a pé em lugares públicos do país que governa.
Lula, então, parece incapacitado para exercer o direito de ir e vir. Suas aparições continuam restritas a recintos fechados e ambientes onde dá para vetar a entrada do público em geral. Ali, na segurança de plateias formadas apenas por militantes, faz discursos carregados de ameaças, insultos e rancor contra “eles” – todos os que querem dizer em voz alta que não concordam com o seu catecismo.
Na última delas, num ato em “defesa da Petrobras” no Rio de Janeiro, prometeu pôr “o exército do MST” na rua. Foi ouvido, pouco depois, quando mulheres “sem terra” e com o rosto coberto por lenços invadiram um centro de pesquisas para destruir mudas de eucalipto; chegaram lá a bordo de quinze ônibus fretados por uma organização que vive de dinheiro público. É uma situação curiosa: como nem Dilma nem Lula podem sair à rua, ambos acham que ninguém mais pode. Não adianta a presidente dizer que admite o direito de manifestação, quando todos os que estão no seu bonde atacam diariamente quem quer se manifestar contra ela. Adianta menos ainda fazer advertências contra a possível “violência” dos protestos quando não foi capaz de dizer uma única palavra para condenar a selvageria que o MST acaba de praticar.
A recusa das forças do governo em aceitar que a população se exprima livremente em público não poderia ser mais óbvia, também, quando acusam os manifestantes de ser os costumeiros “golpistas” deste país. Tornou-se a última moda, nessa toada, dizer que quem discorda está querendo inventar um “terceiro turno” para as eleições do ano passado. Quem, até agora, sugeriu anular a eleição de Dilma? Ou será que o PT está querendo que, uma vez encerrada a votação, fique proibida qualquer crítica ao vencedor?
Um disparate com idênticos teores de falência mental é a tese, especialmente exótica, segundo a qual quem se manifesta a favor do impeachment de Dilma está propondo um “golpe militar”. Como é mesmo? Qualquer cidadão brasileiro tem o pleno direito de falar a favor do impeachment; na verdade, pelo que está escrito na lei, tem até o direito de assinar ele mesmo um pedido legal de deposição do presidente da República. (O PT, ainda outro dia, chefiou a campanha que levou ao impeachment de Fernando Collor.
No governo seguinte, defendeu abertamente o “Fora FHC”; só sossegou quando Lula foi enfim eleito.)
É realmente extraordinário que diferenças de opinião possam levar ao ódio. Mas é justamente isso que Lula, Dilma e o PT estão construindo no momento. Estimulam um Brasil onde as pessoas desprezem umas às outras, ignorem a tolerância e obedeçam a quem manda. Essa é a pior subversão.
20 de março de 2015
J.R.Guzzo, Veja
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