"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 7 de março de 2014

CARTA ABERTA AOS MILLITANTES

Mais irritante que o intelectual, só mesmo o intelectual militante. Seja de esquerda, seja de direita, se é que estas palavras ainda têm algum sentido. Por intelectual militante entendo aqueles salvadores de pátria, que lutam para salvar o que pode ser salvo do Brasil. Ora, direis, nada mais nobre do que salvar a pátria. Até pode ser. Mas fazer disso um ofício ou profissão de fé é vigarice.

Estes vigaristas pululam nestes dias de Internet. Inundam as ditas redes sociais denunciando a corrupção, xingando o PT e os petistas, fazendo da desestatização um mantra, pregando o liberalismo e citando Von Mises e Ayn Rand. Não que haja algo reprovável nestas bandeiras ou no culto a profetas do óbvio. Acontece que o militante se esgota no militar, e se sente um herói incompreendido em seu desejo de um mundo melhor. Sim, eu já fui militante do mundo melhor. Aconteceu nos breves dias em que era católico e pertenci inicialmente à JEC e depois à JUC.

Por um mundo melhor – este era nosso lema. Nos reuníamos em congressos pelo país afora e voltávamos inflamados, cheios de um entusiasmo sagrado, dispostos a transformar o homem e o mundo. No fundo, estávamos sendo manipulados por padres e marxistas, que faziam do ativismo intelectual uma profissão.

Eu era dos mais fogosos. Aos quinze, dezesseis anos, era bom de verbo e conquistava platéias. Certa vez, quando nos despedíamos em um congresso em São Paulo, todos cheios de fogo e dispostos a incendiar as cidades para as quais voltávamos, quais um Paulo após a queda do cavalo na estrada de Damasco, uma freirinha abraçou-me chorando: com mil homens como você, salvávamos o mundo.

Que homens? Que homem? Que mundo? Eu era um adolescente fanatizado, que sequer ganhava a própria vida e a única coisa que sabia fazer bem era falar. Não, não me arrependo nem me envergonho daqueles dias. Eu vivia circunstâncias pelas quais devia passar, para chegar um dia ao entendimento. Não demorou muito para descrer de tudo aquilo em que acreditava e me senti ridículo até o âmago.

Ainda bem que vivi bem cedo esse ridículo. Aos vinte, não mais militava e tratava de cuidar de meu jardim. Eram dias em que a adultez costumava chegar em seu devido tempo. Hoje vemos barbados, de trinta e mais anos, agindo como adolescentes entusiasmados com a descoberta de um brinquedinho excitante.

O poeta cedo soube disso:
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.


Derrotismo? Nada disso. Apenas a consciência de que falar e apenas falar não leva a nada. Quem salva o Brasil – ou qualquer país – é aquele anônimo cidadão que faz seu humilde – ou não tão humilde – trabalho, sem palavras nem intenções grandiloqüentes, mas tratando de fazê-lo da melhor maneira possível. É o padeiro que distribui o pão nosso de cada dia, o garçom que nos serve, o taxista ou motorista que nos conduz. Ou o professor que se sente bem educando, consciente de que está semeando o futuro, o engenheiro que constrói prédios e pontes, consciente de que constrói a cidade humana, o médico que faz o que pode para devolver moribundos à vida, o enfermeiro que dá continuidade à ação do médico.

Desde jovem, fui tomado por um vício que hoje considero um tanto perverso, o culto aos escritores e artistas. Quando publiquei meus primeiros rabiscos, em uma entrevista, respondi a uma jornalista, com a arrogância típica dos jovens: - Escrevo para expulsar meus demônios. Durante semanas, repousei contente sobre o efeito daquela frase.

Que demônios? Eu certamente havia lido o chavão em algum lugar e o repetia como se tivesse descoberto a América. Eu escrevia movido pelo motivo que move todos que escrevem, a vaidade. Durante muito tempo, acreditei que nos escritores residia a salvação do mundo. Provavelmente influenciado por Sábato, que sempre defendeu uma espécie de clericatura da literatura. Hoje, me sinto mais inclinado a conviver com engenheiros, médicos, cientistas e técnicos. E, que me perdoem os amigos escritores que ainda conservo, me sinto um pouco mal junto a escritores.

A verdade é que escritor – hoje no Brasil – é um sofisticado esmoler de favores do erário, um penetra sedento no banquete dos bem aquinhoados. Quando fazia Filosofia, lembro-me que tínhamos profundo desprezo pelos estudantes de engenharia. Nós é que entendíamos o mundo, os candidatos a engenheiro não passavam de mercenários interessados no vil metal e nos confortos burgueses. Uma menina da Filosofia que fosse aos bailes da Engenharia era vista como uma piranha. Na verdade, a moça já descobrira que com os salvadores do mundo não tinha um futuro brilhante.

Não, não estou traindo a grande arte ou a grande literatura. Entre meus heróis ainda estão Cervantes, Swift, Schliemann, Orwell, Pessoa, Hernández, Mozart, Bizet, Verdi. Mas a vida ensinou-me a admirar aqueles seres que, muitas vezes sem grandes conhecimentos de arte, constroem o mundo em que vivemos. Há moleques na Internet se julgando heróis porque combatem – julgam combater – a corrupção. Como se para combatê-la bastasse dizer: abaixo a corrupção, morte aos corruptos. Em entrevista que devo publicar em breve, eu respondia a um desses jovens salvadores da pátria: - Não simpatizo nada com esses protestos em redes sociais e muitos blogs contra a corrupção. De modo geral, é coisa de militante de sofá.

Corrupção não é coisa que possa ser combatida – nem mesmo denunciada – por cândidas almas indignadas. Que tem a dizer sobre o Maluf um pobre diabo indignado, se nem a máquina da Justiça consegue colocá-lo atrás das grades? A maior parte dos protestos contra a corrupção que se vê por aí é coisa de bobalhões que se pretendem heróis. Um cidadão comum pouco ou nada pode fazer para combater a corrupção. Poderá fazer algo se estiver muito próximo do esquema corrupto e puder denunciá-lo com provas e documentos.

Corrupção não é, em princípio, coisa para cidadão comum. É caso para a justiça, para a polícia, para peritos, para jornalismo altamente especializado. Os crimes de lavagem de dinheiro são sofisticados e combatê-los exige uma máquina muito cara e investigadores treinados. A Receita Federal tem enviado auditores fiscais para treinamento nos Estados Unidos. Isto é: se corrupção não é para qualquer um, combatê-la muito menos.

Há quem me julgue um batalhador das boas causas, alguém que luta por um país melhor. Equívoco. Não luto por nada. Apenas constato e me divirto constatando. Jamais direi: abaixo a corrupção. Isto é bandeira dos militantes do óbvio. Mas me diverte, isto sim, desvelar os baixos instintos que se escondem atrás de causas pretensamente nobres. Escrevo para divertir-me, não para construir mundos melhores. Deixo esta bandeira para os militantes de sofá. Por hoje é só.


07 de março de 2014
janer cristaldo

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