"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A PICARETAGEM DO NEOLIBERALISMO

  
          Artigos - Movimento Revolucionário 
Neoliberalismo é algo que serve para palanques e panfletos políticos, não é uma categoria de análise.

Toda vez que vejo um acadêmico usando o termo neoliberalismo para analisar qualquer coisa confesso sentir um grande mal-estar. Dificilmente ele consegue chegar a uma definição exata do que isso significa sem apelar para suas afinidades políticas, econômicas ou particularismos. Dada a insignificância do conceito, o governo Lula é tão neoliberal quanto não neoliberal.


Neoliberalismo simplesmente não funciona como categoria de analise. Não é uma questão de gosto, mas de um termo que é usado e definido sem rigor, caracterizando mais um sentimento político de quem rejeita a economia de mercado do que uma corrente de pensamento ou um conjunto de políticas públicas.

O neoliberalismo às vezes é tomado como um momento histórico (governos na América Latina na década de 1990), um texto fundador (o chamado Consenso de Washington) ou políticas econômicas emanadas por instituições como Banco Mundial e FMI. Pior ainda, pode ser definido como qualquer medida liberal (como privatização, redução de impostos e controle de déficit governamental) feita em governos contemporâneos. Em casos extremos, já vi referências ao governo de Porfírio Diaz (1876-1911), no México, como neoliberal.
Analisemos algumas dessas supostas definições.

O governo Collor é considerado um dos marcos do neoliberalismo no Brasil e na América Latina. Foi esse governo que iniciou a (ainda tímida) abertura econômica no Brasil. Entretanto, foi o mesmo governo que confiscou a poupança e a conta corrente dos brasileiros, o mais longe da heterodoxia intervencionista que os economistas brasileiros foram capazes. Collor não tinha nada de liberal convicto — em Notícias do Planalto, Mário Sérgio Conti relata como Collor tomou emprestado de José Guilherme Merquior um rótulo de “socialista liberal” só para não ficar sem algo para se definir. Na página 336, Conti relata o seguinte diálogo entre Collor e José Guilherme Merquior:

— Embaixador, preciso de uma base ideológica. Falam que eu sou de direita, e para mim a direita é o Delfim Netto e o Roberto Campos. O senhor me vê como político de direita?
— Não. O vejo como um socialista liberal.
— Mas não há uma contradição entre o socialismo e o liberalismo?
— Não. O Norberto Bobbio usa e defende essa classificação — disse o diplomata, apoiando-se nas teorias do cientista político italiano.

É com essa “convicção” que tratam Collor como o marco inicial do neoliberalismo no Brasil. Como menino rico, Collor via que os carros brasileiros eram carroças e podia intuir que mais protecionismo não iria melhorar a base industrial existente, mas Collor não tinha formação intelectual sólida nem convicções liberais. Tanto que, ao confiscar a poupança, quase matou do coração Roberto Campos, como relata o jornalista e ex-assessor do senador pelo Rio de Janeiro, Olavo Luz, no livro ‘Roberto Campos — um retrato pouco falado’ (2002).
Já muitos socialistas brasileiros foram gratos a Collor por poder finalmente comprar um Lada…
Sem convicção liberal, Collor apoiou um plano econômico que era um brutal confisco à propriedade privada porque achava que era a bala que ia matar a inflação. Suas medidas liberalizantes também podem ser lidas da mesma forma, mais pelo fracasso e esgotamento do antigo modelo de substituição de importações do que por um vendaval liberal.

Mesmo a privatização brasileira foi feita desde o final dos anos 1970 mais por pragmatismo do que por ideologia. Um bom histórico sobre o assunto encontra-se em ‘Privatização no Brasil: Por quê? Até onde? Até quando?’, de Armando Castelar Pinheiro, para quem tanto a estatização no Brasil quanto a privatização se deu mais por pragmatismo do que por ventos ideológicos.

O tal Consenso de Washington tem sua origem num texto do economista John Williamson, ‘What Washington Means by Policy Reform’. Escrito no ano 1990, buscava sintetizar o que os países da América Latina deveriam empreender dentro dos pacotes de reformas estruturantes para lidar com a região, que ainda não havia se encontrado após a década perdida.
Estão lá 10 tópicos bastante pragmáticos de como colocar a casa em ordem e obter crescimento de longo prazo, como controlar o déficit público, alocar melhor subsídios, redução (e não eliminação) do protecionismo. Mas também investir mais em educação e saúde para os mais pobres, em infraestrutura para sustentar o crescimento, e ter uma taxa de câmbio flutuante e “competitiva” de forma a incentivar as exportações.
E é dito e repetido que a Argentina foi a aluna mais aplicada do “Consenso de Washington” na década de 90. Mas como é possível apontar para o país do “comitê monetário” (currency board) e dos déficits incontroláveis das províncias e dizer que ela aplicou “fielmente” as “lições” do “Consenso de Washington?” Só mesmo na fantasia dos que acreditam em “neoliberalismo”.

Quem comparar o que já ouviu falar do tal de “Consenso de Washington” e o que de fato está escrito no texto de Williamson vai ter muitas surpresas. O economista chega a afirmar ter dúvidas sobre os benefícios da privatização. “Minha visão pessoal é a de que a privatização pode ser muito construtiva quando resulta em aumento da competição, e muito benéfica quando alivia pressões fiscais, mas eu não estou persuadido de que o serviço público é sempre inferior à ganância privada como força motivadora.”
E cita setores como transporte público e fornecimento de água como áreas em que pode ser mais vantajosa a operação estatal.

Se através de políticas macroeconômicas fica difícil caracterizar um país como neoliberal, na política social tampouco. Vejamos o caso do Bolsa-Escola e as demais bolsas criadas no governo FHC, depois chamadas conjuntamente de Rede de Proteção Social. Eram chamados antes como política neoliberal pela oposição petista.

A linha de argumentação é de que se tratava de um pacote de políticas assistencialistas, que em vez de modificar a estrutura econômica e a participação da renda dos trabalhadores na sociedade capitalista, apenas redistribuía parte dos recursos para alguns, dessa forma aliviando a pobreza e mitigando a mobilização para mudanças de verdade. Havia ainda outra linha, que classificava todos os programas de distribuição de renda com foco nos mais pobres como neoliberais, uma vez que pretendiam substituir as ações universalistas de um gigante estado de bem-estar social. Aí o Bolsa Escola vira Bolsa Família, no governo Lula, e programas semelhantes começam a pipocar na América Latina “bolivariana”, como o “Bônus Juancito Pinto” de Evo Morales, na Bolívia. Evo, adotando política social neoliberal?

Conheço vários intelectuais que defendem o liberalismo político e econômico e eles podem divergir em muitos pontos. Normalmente, quando perguntado por qual corrente se identificariam, podem dizer algo como “austríaco”, “monetarista”, ou mesmo social-democrata ou terceira-via. Nenhum deles se identifica como “neoliberal”, um rótulo usado pela esquerda que foi preenchido com tudo o que esta tendência política não gosta.

A administração Lula manteve a estrutura econômica do governo anterior, o “neoliberal”, mas claro que petistas rejeitam esse tipo de rótulo.
Mas a esquerda da esquerda, o PSOL ou PSTU, continuaram repetindo que o PT traiu os ideais dos trabalhadores e governaram com os grandes banqueiros e o neoliberalismo. Ou seja: neoliberalismo é algo que serve para palanques e panfletos políticos, não é uma categoria de análise. Pena que inúmeros acadêmicos, não só no Brasil, não queiram ver isso, o que provoca enorme dano a discussão séria de ideias.
O que começa nos palanques vai sendo reproduzido como verdade em artigos e livros acadêmicos, criando grupos de picaretas (que sabem que o termo é oco e só serve para atacar adversários) e desavisados. Sendo assim, o governo Dilma que nem começou poderá ser visto como neoliberal ou como não neoliberal, a depender do gosto de quem use a palavra.

21 de novembro de 2013

Renato Lima, jornalista, é mestre em Estudos da América Latina (University of Illinois at Urbana-Champaign) e doutorando em ciência política (MIT).

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