O político enganador e poderoso algemado promove empatia porque não temos como fotografar o seu crime. Ele roubou ‘do governo’
Pensar alto, exteriorizando em palavras ou gestos o que está restrito ao interior da cabeça, é muito perigoso. Corre-se risco quando se fala o que se pensa e se pensa o que se fala. Pode dar prisão e morte — destruir reputações. Você pode ser chamado de esquerdista ou, como hoje é moda, de golpista e, pior que tudo, de liberal...
Livre da consciência, o pensamento é controlado, protocolado ou proibido. Nas ditaduras não se pode pensar. As cabeças autoritárias coroadas pelo êxito assumem que tomar partido é decidir.
Falamos em fake news sem prestar atenção a que elas são atos falhos, são sussurros mentais e, como as intrigas e calúnias, são descobertas incômodas — verdades verdadeiras. Expressões de desejos e de alternativas culturais suprimidas ou reprimidas. Não falo nem morto; se ele for condenado, morremos...
Muitas anedotas que circularam em regimes despóticos revelam isso claramente. No Brasil, muitas ressaltavam e extrema feiura, ausência de inteligência e de tato de alguns dos nossos ditadores. Na Alemanha do nacional-socialismo existe um verdadeiro cânone desses eventos imaginários, expressivos de desejos aprisionados. Eis um exemplo:
“Hitler e Goering estão olhando a paisagem do alto de uma estação de rádio em Berlim. Hitler revela que ele gostaria de fazer alguma coisa que abrisse um sorriso nos rostos tristes dos berlinenses. Goering pensa um pouco e sugere: ‘Por que você não pula?’”
Ouvida por nazistas, a piada deu interrogatório e perseguição. Os politicamente corretos não podiam admitir o humor que deixa “falar alto” e revela os interstícios. A filigrana onde os desejos lutam para sair porque denunciam a mistificação.
Certas piadas, senão todas, bem como o seu inverso — as calúnias e pragas que fazem sofrer e chorar —, são censuradas porque o “pensar alto” revela o lado dissimulado de um regime ou pessoa sagrada.
Pensar alto é um meio-termo entre o peso da verdade e o seu desvendamento. No meu longo e elaborado treinamento, cujo destino era ser pesquisador e professor, eu passei por muitos exercícios de controle do pensar alto. Uma vez assisti a uma conferência singularmente presunçosa sobre “teoria do parentesco” proferida por um pós-estruturalista francês no Museu Geral, onde trabalhava. Seu ponto de partida era genial: só há parentesco porque um homem se casa com uma mulher...
Meu professor adorou. Eu, porejando pusilanimidade, concordei, mas pensei baixinho com desmedida coragem: trata-se de uma besta quadrada! A quantas conferências e seminários idiotas eu assisti? Em quantas aulas e palestras eu mesmo disse lixo? Quantas vezes eu sufoquei o meu pensar alto? Perdi a conta...
Lembro-me de alguns conselhos recebidos nesta preparação para uma apropriada cultura da hipocrisia. Quando, no seu período préTrump, os Estados Unidos eram a América, meu mentor exigia que eu fosse direto ao ponto (go straight to the point!) arcando com todas as consequências, inclusive a de revelar a desonestidade intelectual do conferencista ou do autor. No Brasil, porém, onde discordar é tido como falta de consideração e de humanidade (errar é humano, persistir no erro é estar no lugar certo e ser superior!), aprendi o exato oposto: “Jamais, admoestou-me um mentor, diga o que você pensa!” Encaixei as duas lições e confesso a minha total insegurança entre o pensar alto e deixar de pensar.
Quando eu observo que um operador profissional de propinas está paradoxalmente “preso” na sua fazenda porque o Estado não tem tornozeleiras eletrônicas, eu penso alto: não seria melhor acabar com julgamentos de todas as ex-autoridades que continuam a gozar de suas majestades?
Queremos justiça, mas não gostamos de suas consequências: prisões, igualdade absoluta, isolamento e algemas. O político enganador e poderoso algemado promove empatia porque não temos como fotografar o seu crime. Ele roubou “do governo”, recebeu propinas, seus companheiros mais chegados o denunciaram abertamente, ele quebrou o Brasil, mas a “crise”, embora tremenda, é impessoal e abstrata. Ela é sentida e vivida, mas não pode ser presa e ninguém vai morrer por ela.
Pensando alto, o que conta no Brasil é a personificação. Milhares, porém, foram algemados a uma vida miserável por irresponsabilidade do governante, mas, ao vê-lo prestes a ser julgado e a receber o seu fim político, o coveiro de esperanças é transformado por alguns numa pobre vítima e num herói nacional. Tudo é falso e irreal. Trata-se, inclusive, de julgar o julgamento. Eis o dogma em estado puro. O assassínio do pensamento.
25 de janeiro de 2018
Roberto Damatta, O Globo
Pensar alto, exteriorizando em palavras ou gestos o que está restrito ao interior da cabeça, é muito perigoso. Corre-se risco quando se fala o que se pensa e se pensa o que se fala. Pode dar prisão e morte — destruir reputações. Você pode ser chamado de esquerdista ou, como hoje é moda, de golpista e, pior que tudo, de liberal...
Livre da consciência, o pensamento é controlado, protocolado ou proibido. Nas ditaduras não se pode pensar. As cabeças autoritárias coroadas pelo êxito assumem que tomar partido é decidir.
Falamos em fake news sem prestar atenção a que elas são atos falhos, são sussurros mentais e, como as intrigas e calúnias, são descobertas incômodas — verdades verdadeiras. Expressões de desejos e de alternativas culturais suprimidas ou reprimidas. Não falo nem morto; se ele for condenado, morremos...
Muitas anedotas que circularam em regimes despóticos revelam isso claramente. No Brasil, muitas ressaltavam e extrema feiura, ausência de inteligência e de tato de alguns dos nossos ditadores. Na Alemanha do nacional-socialismo existe um verdadeiro cânone desses eventos imaginários, expressivos de desejos aprisionados. Eis um exemplo:
“Hitler e Goering estão olhando a paisagem do alto de uma estação de rádio em Berlim. Hitler revela que ele gostaria de fazer alguma coisa que abrisse um sorriso nos rostos tristes dos berlinenses. Goering pensa um pouco e sugere: ‘Por que você não pula?’”
Ouvida por nazistas, a piada deu interrogatório e perseguição. Os politicamente corretos não podiam admitir o humor que deixa “falar alto” e revela os interstícios. A filigrana onde os desejos lutam para sair porque denunciam a mistificação.
Certas piadas, senão todas, bem como o seu inverso — as calúnias e pragas que fazem sofrer e chorar —, são censuradas porque o “pensar alto” revela o lado dissimulado de um regime ou pessoa sagrada.
Pensar alto é um meio-termo entre o peso da verdade e o seu desvendamento. No meu longo e elaborado treinamento, cujo destino era ser pesquisador e professor, eu passei por muitos exercícios de controle do pensar alto. Uma vez assisti a uma conferência singularmente presunçosa sobre “teoria do parentesco” proferida por um pós-estruturalista francês no Museu Geral, onde trabalhava. Seu ponto de partida era genial: só há parentesco porque um homem se casa com uma mulher...
Meu professor adorou. Eu, porejando pusilanimidade, concordei, mas pensei baixinho com desmedida coragem: trata-se de uma besta quadrada! A quantas conferências e seminários idiotas eu assisti? Em quantas aulas e palestras eu mesmo disse lixo? Quantas vezes eu sufoquei o meu pensar alto? Perdi a conta...
Lembro-me de alguns conselhos recebidos nesta preparação para uma apropriada cultura da hipocrisia. Quando, no seu período préTrump, os Estados Unidos eram a América, meu mentor exigia que eu fosse direto ao ponto (go straight to the point!) arcando com todas as consequências, inclusive a de revelar a desonestidade intelectual do conferencista ou do autor. No Brasil, porém, onde discordar é tido como falta de consideração e de humanidade (errar é humano, persistir no erro é estar no lugar certo e ser superior!), aprendi o exato oposto: “Jamais, admoestou-me um mentor, diga o que você pensa!” Encaixei as duas lições e confesso a minha total insegurança entre o pensar alto e deixar de pensar.
Quando eu observo que um operador profissional de propinas está paradoxalmente “preso” na sua fazenda porque o Estado não tem tornozeleiras eletrônicas, eu penso alto: não seria melhor acabar com julgamentos de todas as ex-autoridades que continuam a gozar de suas majestades?
Queremos justiça, mas não gostamos de suas consequências: prisões, igualdade absoluta, isolamento e algemas. O político enganador e poderoso algemado promove empatia porque não temos como fotografar o seu crime. Ele roubou “do governo”, recebeu propinas, seus companheiros mais chegados o denunciaram abertamente, ele quebrou o Brasil, mas a “crise”, embora tremenda, é impessoal e abstrata. Ela é sentida e vivida, mas não pode ser presa e ninguém vai morrer por ela.
Pensando alto, o que conta no Brasil é a personificação. Milhares, porém, foram algemados a uma vida miserável por irresponsabilidade do governante, mas, ao vê-lo prestes a ser julgado e a receber o seu fim político, o coveiro de esperanças é transformado por alguns numa pobre vítima e num herói nacional. Tudo é falso e irreal. Trata-se, inclusive, de julgar o julgamento. Eis o dogma em estado puro. O assassínio do pensamento.
25 de janeiro de 2018
Roberto Damatta, O Globo
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