O STF nunca esteve tão famoso – e tão desgastado com a população. Poucos sabem o que é o ativismo jurídico, mas ele é a causa da crise. Por Arthur Dutra.
Não é de hoje que o STF, o Supremo Tribunal Federal, conquistou um certo protagonismo na vida pública brasileira, algo que se deu – não por coincidência – após a promulgação da Constituição de 1988. Os pronunciamentos da nossa Suprema Corte têm despertado os ódios e as paixões típicos da política partidária, o que por si só já é digno de nota, visto que no arranjo original dos poderes concebido por Montesquieu, é justamente o Judiciário aquele mais discreto e menos propenso às idas e vindas do calor do embate político, pois lhe caberia tão somente a aplicação das leis produzidas no Parlamento.
Mas se ao Poder Judiciário foi reservada tão discreta função, por qual razão ele tem suscitado tanta euforia e ojeriza às decisões proferidas por seus membros, notadamente os do STF? Vários fatores são responsáveis por esse protagonismo do Judiciário, dentre eles o próprio realinhamento do papel das Supremas Cortes como guardiões e defensores do topo da ordem jurídica nas democracias modernas: a Constituição. Mas dentre os diversos causadores do protagonismo do STF, há um em especial que é tanto amplamente estudado e professado pelos juristas[1] – notadamente os alinhados à esquerda – como ignorado pelo público em geral: o ativismo judicial.
É bom que se diga, de largada, que o ativismo judicial não é um fenômeno tipicamente brasileiro. Não. É uma prática já consolidada e em franca expansão no mundo inteiro, em países como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Itália, Costa Rica, África do Sul dentre outros. E tão largamente utilizada há razoável tempo, que é possível até mesmo dizer que o Brasil, como sempre, anda atrasado nesta caminhada. Só isso já é motivo suficiente para ficarmos preparados para o que sairá em breve dos julgados da nossa Suprema Corte. E não tardará, pois nossos ministros andam realmente bem apressados para tirar esse tempo costumeiramente perdido no atraso, tanto das boas quanto das más soluções que o mundo testa antes de nós. Vejamos um exemplo.
A Suprema Corte da Colômbia, uma das mais ativistas do mundo, reconheceu que as condições carcerárias inadequadas configuravam um “estado de cosas inconstitucional”, e expediu onze ordens para diversas autoridades colombianas a fim de que façam cessar a violação de direitos humanos nas prisões colombianas. Isso foi em 1998.
No Brasil, há pouquíssimo tempo, o STF, também reconhecendo a situação degradante de um presídio do Mato Grosso do Sul, deferiu a um detento uma indenização por danos morais no valor de R$ 2.000,00, a ser paga pelo estado.
Em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso, um dos maiores entusiastas do ativismo judicial no STF, invocou o caso colombiano para ir além da tutela indenizatória tradicional e propôs uma nova forma de compensação ao preso, “consistente na remição de 1 dia de pena por cada 3 a 7 dias de pena cumprida em condições atentatórias à dignidade humana, a ser postulada perante o Juízo da Execução”, situação não prevista na Lei de Execuções Penais. O ministro Barroso ficou vencido neste julgado, prevalecendo “apenas” a indenização, o que não significa que a mentalidade ativista que ele traz no voto seja repudiada pelos demais ministros. Isto, portanto, nos traz a certeza de que o STF, em futuro não muito distante, irá além de uma mera indenização de R$ 2.000,00 em casos assim, e fará algo parecido com o que fez a Suprema Corte colombiana.
“Estado de cosas inconstitucional”
Também não muito distante, o mesmo ministro Luís Roberto Barroso[2] adotou postura ativista para interpretar o Código Penal à luz dos direitos reprodutivos da mulher na parte em que disciplina o crime de aborto, descriminalizando a conduta em gestações de até 3 (três) meses. E o fez seguindo os passos de Cortes Constitucionais de outros países que já declararam a inconstitucionalidade da punição da mulher que abortar seu filho até o terceiro mês.
Barroso, o revolucionário de toga.
Esses são apenas dois exemplos mais recentes da postura ativista que o STF tem adotado em casos a ele submetidos a julgamento. Mas a lista é imensa e vai desde a fidelidade partidária até aborto de fetos anencefálicos e cláusula de barreira. E irá avançar mais nos passos do neoconstitucionalismo e da intensa judicialização da vida, onde qualquer querela, pública ou privada, grande ou pequena, é submetida à apreciação de um juiz e, não raro, chega até as alturas da nossa Suprema Corte que, como disse, anda bem ansiosa para se igualar em ativismo e progressismo às Cortes ativistas espalhadas pelo mundo. A ânsia do Brasil de adentrar no “primeiro mundo” também chegou no nosso STF.
Mas para que o STF possa atuar desta forma ativista, legislando onde o Parlamento foi omisso, ou mesmo onde ele claramente disse quais foram suas opções, é preciso legitimidade, já que os membros do Judiciário não passam pelo crivo do voto popular e, portanto, não escrevem em seus votos o som das urnas e nem precisam se submeter a elas periodicamente como os políticos. O STF, então, teve que buscar na Alemanha uma teoria capaz de suprir essa lacuna de legitimidade democrática de que careciam os ministros do STF em sua atuação como legisladores. E foi pelas mãos do ministro Gilmar Mendes que ela foi introduzida na fundamentação das decisões ativistas do STF.
Trata-se da Teoria da Argumentação do jurista alemão Robert Alexy, que chegou à conclusão que as Supremas Cortes, como guardiãs das Constituições, têm, sim, sua dose de legitimidade para representarem o povo, mesmo que seus membros não tenham passado pelo processo eleitoral. Numa sentença muito simples e direta, Alexy enunciou assim seu pensamento:
“O princípio tradicional: ‘Todo poder estatal origina-se do povo’ exige compreender não só o parlamento, mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente”.
Robert Alexy, fiador intelectual do ativismo no STF.
Este trecho foi transcrito na íntegra do voto do Ministro Gilmar Mendes[3] no julgamento do caso de pesquisa com células-tronco embrionárias prevista na Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), em que o STF declarou a constitucionalidade das pesquisas com embriões para fins terapêuticos.
No caso, o ministro Gilmar Mendes votou por condicionar a autorização de pesquisa com células-tronco embrionárias “à prévia aprovação por Comitê (Órgão) Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde”, requisito que não era previsto na Lei de Biossegurança. Aqui, além de invocar a legitimidade argumentativa do STF para acrescentar um requisito não previsto na lei, o ministrou trouxe a técnica processual conhecida como “sentença aditiva”, original do Direito italiano, que concede ao julgador a possibilidade de adicionar um sentido ou interpretação não contemplada pelo legislador, a fim de preservar o texto legal original sem declará-lo totalmente inconstitucional[4]. Uma coisa casa com a outra e abre possibilidades imensas ao STF, pois muito embora o ministro Gilmar Mendes tenha ficado vencido nesta ocasião, isso não impediu que tais argumentos e técnicas fossem utilizados posteriormente em diversos outros casos pelo mesmo STF[5].
Gilmar Mendes, referência no STF quando se trata de ativismo.
Assim, dotado de legitimidade e de técnicas processuais das mais ousadas, além de existir o exemplo de outras Cortes ao redor do mundo, não é de surpreender que o STF esteja avançando a passos largos na prática do ativismo judicial. É, portanto, uma realidade. Diante disto, pode-se questionar: mas isso é algo ruim? Vai depender do ponto de vista de quem é afetado pelas decisões “criativas” do STF. Na maior parte das vezes, o STF, quando assim se posiciona, consagra entendimentos caracterizados como progressistas, como no caso do aborto de anencéfalos, das uniões homoafetivas, das cotas raciais etc.
Mas também se presta a usar de ativismo quando os canais de expressão política cometem barbeiragens institucionais, como no caso do nepotismo no serviço público, ou quando o STF interpreta que a execução da pena após a condenação em segunda instância não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, que reza expressamente que um réu só pode receber a pena após o trânsito em julgado da sentença condenatória. São decisões que agradam a maior parte da população, sem dúvida. Mas o ativismo também é usado para ajudar os padrinhos políticos dos ministros, como no caso dos embargos infringentes do Mensalão e na interferência da Corte no rito do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Tem para todos os gostos e ocasiões e o repertório não para de aumentar. Trata-se, portanto, de evidente exercício de poder pelos magistrados, e como tal tende a ser abusado, notadamente quando não encontra resistência.
STF dizendo ao Parlamento como deve ser feito um impeachment.
O que é certo é que, afrouxando-se as balizas legais e constitucionais dentro das quais deve se movimentar o STF, a direção em que serão proferidos os julgados com alta carga ativista irá depender principalmente das convicções ideológicas dos julgadores, dos seus compromissos políticos e da pressão de grupos organizados, notadamente naquelas questões em que as minorias barulhentas não conseguirem fazer prevalecer suas pautas no embate parlamentar ou no processo eleitoral. E é o que tem acontecido. Derrotados nas urnas e no Congresso Nacional, as minorias recorrem ao STF para um novo round no qual elas têm ampla vantagem, pois sabem que a Corte está 1) autolegitimada para representar o povo e por isso pode decidir como quiser, 2) de posse de técnicas processuais avançadas para dizer o que o legislador não quis dizer ou dizer o contrário do que ele disse, e 3) repleta de juízes ideologicamente alinhados com suas pautas, nomeados ao longo dos governos petistas, como Luís Roberto Barroso, e tucanos, como Gilmar Mendes[6].
Ressalte-se, ainda, que a própria Suprema Corte se abre às pressões da “opinião pública”, – leia-se grupos organizados de pressão -, o que é tido como um avanço na democratização da atuação do Poder Judiciário e no acréscimo de legitimidade às suas decisões ativistas. É o que se chama, para usar as palavras de Peter Häberle, jurista alemão de imensa influência no Brasil, de “Sociedade Aberta dos Interpretes da Constituição”, concepção trazida para a prática constitucional brasileira também pelo ministro Gilmar Mendes através de institutos como os amicus curiae, das audiências públicas e da ampliação do rol de legitimados para propor ações no Supremo questionando a constitucionalidade de leis e atos dos demais poderes. E quem seriam os intérpretes da Constituição? O próprio Peter Häberle disse, em entrevista quando esteve no Brasil em 2011, que, dentre outros, “os mais importantes intérpretes são organizações não-governamentais, como, por exemplo, o Greenpeace e a Anistia Internacional”.
Peter Häberle e a Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, em tradução de Gilmar Mendes.
Diante deste cenário, o triunfo da esquerda barulhenta, portadora e idealizadora das pautas progressistas elucubradas nos partidos, nas instâncias burocráticas da ONU e noutros organismos internacionais globalistas, é certa, muito embora possa demorar, afinal, mesmo tão empenhado em avançar rumo ao futuro, a morosidade ainda é a principal marca do STF. E a classe política tradicional, muito mais preocupada em encher os bolsos em paz, não atentou para o avanço do STF sobre suas competências. Só quem, até agora, negou obediência ao ativismo judicial do STF foi o vilão da República, o senador Renan Calheiros, embora pelos motivos errados, pois ao negar-se a cumprir a ordem de seu afastamento, não era sua intenção preservar as prerrogativas constitucionais do Congresso Nacional diante de uma intromissão do Judiciário, e sim salvar a própria pele.
Renan Calheiros, mirou no que viu, acertou no que não viu.
O Direito, portanto, é um dos mais importantes – e ignorados pela direita – fronts do embate ideológico dos dias de hoje, pois é através das formulações jurídicas, concretizadas em sentenças e acórdãos com forte carga de ativismo judicial, notadamente num STF cada vez mais protagonista da cena pública brasileira, que a esquerda mundial tem feito avançar sua agenda, que ainda vem trazendo na sua esteira a destruição da harmonia entre os poderes num regime democrático.
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[1] Como exemplo, na última década, a Revista Jurídica da Presidência, editada pela Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, publica pelo menos um artigo a cada edição com temáticas ligadas ao ativismo judicial ou à ampliação das funções do STF na República brasileira.
[2] Em seu livro “Direito Constitucional Contemporâneo”, amplamente lido nas faculdades de Direito espalhadas pelo Brasil, Luís Roberto Barroso dedica a obra à “Revolução que não veio, aos que não perderam o ideal”.
[3] O mesmo pensamento foi defendido por Gilmar Mendes em entrevista veiculada na mídia.
[4] Trecho do voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento da Lei de Biossegurança: “Portanto, é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais europeias”.
[5] O crescimento da influência intelectual de Gilmar Mendes no STF é colocada como uma das condições para que a Corte tenha avançado nas práticas interpretativas ativistas. “Dimensões do ativismo judicial no STF”, de Carlos Alexandre de Azevedo Campos, jurista e assessor do gabinete do Min. Marco Aurélio.
[6] Digo de nota que recentemente o jurista Carlos Alexandre de Azevedo Campos, assessor do Ministro Marco Aurélio no STF, lançou o livro “Dimensões do ativismo judicial no STF”, prefaciado por Luís Roberto Barros, onde faz apologia do ativismo no STF. Flávia Piovesan, sempre lembrada quando surge uma vaga no STF, é também grande defensora do ativismo judicial, notadamente em matéria de direitos fundamentais.
09 de maio de 2017
arthur dutra
senso incomum
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