“Jorge, aqui é o Tim Lopes, amanhã estou te mandando três famílias dos presos que morreram no presídio da Frei Caneca na matança da semana passada pra você cuidar dos processos na justiça. Pode ser?”.”Sim, Tim Lopes, pode mandar”. Essas ligações de Tim Lopes lá para o escritório eram frequentes de 1974/5 a 1985/86. Tim ainda era iniciante na carreira de repórter. Talentoso, simples, inovador e destemido, anos depois foi para a TV Globo. Foram 33 ações que advoguei contra o Estado do Rio de Janeiro com pedido de indenização pelas mortes de detentos nos presídios. Mais da metade foi o Tim Lopes quem mandou as famílias me procurarem.
A Justiça acolheu 30 ações e o Estado foi condenado 30 vezes. Apenas três não vingaram. Como eram ações inéditas e pioneiras, logo viravam manchetes dos jornais e nos noticiários da televisão, quando entravam na Justiça e quando o Estado era condenado. Anos depois Fritz Utzeri, do Jornal do Brasil, foi lá no escritório me entrevistar. Fez só três perguntas: por que eu me dedicava à causa dos detentos; se eu pretendia no futuro ser político e me candidatar; quanto eu cobrava de honorários.
ESPERANÇA – Me dedico porque tenho a esperança de que o Estado, de tanto ser condenado, vai entender que é melhor gastar com a ressocialização do condenado do que com o pagamento das indenizações pelas mortes nos presídios. Odeio política partidária e nunca vou me candidatar a cargo algum. Trabalho de graça, do início ao fim, e até recuso gratificação no final do processo, quando o dinheiro sai. Foram as respostas que dei a Utzeri.
Também recebi um telegrama de felicitações do advogado americano Ralph Nader, que me convidou para ir aos Estados Unidos. Nader também defendia os consumidores, os pobres, as causas de direitos coletivos e foi quatro vezes candidato a presidente do seu país. Agradeci muito. Mas não fui. O telegrama está comigo até hoje.
VAI CUSTAR CARO – Essa matança lá em Manaus vai custar caro para o governo do Estado do Amazonas. Só a título de dano moral o Estado será condenado a pagar nunca menos de 500 salários mínimos para cada família de detento morto. Como são contados até agora 60 presidiários assassinados, o total passa de 28 milhões de reais apenas de indenização por danos morais. Ainda tem o pagamento de pensão para os dependentes das vítimas.
Se o Estado do Amazonas reconhecesse hoje sua responsabilidade e hoje pagasse tudo de uma só vez, incluindo a antecipação da pensão de 2/3 do salário mínimo e média de 30 anos de provável sobrevida dos presos assassinados, o somatório das indenizações seria hoje em torno de 150 a 200 milhões de reais.
AÇÕES INDIVIDUAIS – Aviso: as ações nunca devem ser coletivas. Não dá certo. Tumultua e demora ainda mais. Devem ser individuais. Para cada detento morto, uma ação na Justiça. O prazo para processar o Estado é de 5 anos, contados do dia da morte do detento. Depois desse prazo, consuma-se a prescrição e os processos não mais poderão ser abertos. Salvo as pensões, cujo pagamento se dá com a inclusão dos nomes dos beneficiários na folha de pensionistas do Estado, o restante somente pode ser pago através de Precatório, que é uma requisição que a Justiça faz ao Estado para que pague o valor da condenação.
Se o Precatório (requisição) der entrada no Tribunal de Justiça do Amazonas até 30 de Junho, o Estado terá que fazer o pagamento entre 1º de Janeiro a 31 de Dezembro do ano seguinte. É o que determina a Constituição Federal.
FOI TUDO INÚTIL – Minha luta, meu empenho foram inúteis. Perdi meu tempo. O Estado não tomou jeito. Acabaram com o complexo da Frei Caneca no Rio e as matanças continuam. No Rio, muito menos, é verdade. O complexo de BangU parece organizado. Mas lá em Pedrinhas e agora em Manaus?
Corria o ano de 1984 e numa tarde de segunda-feira, no Palácio São Joaquim, fiz esse desabafo ao Cardeal Eugênio Salles e ao padre Bruno Trombeta, também dois defensores da população carcerária. Disse aos prelados que tinha perdido a esperança. Ambos ouviram e me deram ânimo para prosseguir. Prometi continuar. Continuei. Mas logo depois, parei para sempre. Não aceitei mais causas indenizatórias contra o Estado por morte de presidiário.
O Poder Público não se importa com os presidiários. Se nós, que não cometemos crime algum, somos abandonados pelo Estado, quanto mais aqueles que um dia contribuíram para o desequilíbrio social e estão jogados nos cárceres cumprindo suas penas! Se estivesse entre nós, é certo que Graciliano Ramos diria que nada mudou. Mais de 50, 60 anos depois, nas masmorras do país, continuam amontoados “homens aniquilados, na dependência arbitrária de um anão irresponsável, de um criminoso boçal. Na imensa porcaria, duzentos indivíduos postos fora da sociedade achatavam-se numa prensa, ódio em cima e embaixo” (Memórias do Cárcere, 2º volume, página 177).
RESPONSABILIDADE CIVIL – A situação do Estado do Amazonas — e de todos os demais Estados cujos presos são mortos nos cárceres — é indefensável. A responsabilidade civil que sobre si recai é indiscutível. Cada presidiário é como um passageiro, que o Estado, dele transportador, se obriga a levá-lo incólume, desde o dia do encarceramento ao da libertação, cumprindo-lhe o dever de restituí-lo inteiramente ressocializado à sociedade. Esse é um ideal nunca alcançado no Brasil e que tão cedo também não será.
O constituinte de 1988 inseriu nos Direitos e Garantias Fundamentais, o seguinte dever dirigido ao Estado: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (CF, artigo 5º, item XLIX). Isso é o que está no papel porque na prática, no ano-a-ano e há décadas e décadas a realidade é bem diferente. Saibam os governantes que O Estado não investirá em vão se recuperar, como deve, aqueles que o próprio Estado condenou. É o múnus que a coletividade lhe impõe. É de sua própria natureza. É de sua função orgânica.
DEVER DO MINISTRO – O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, está em Manaus. Foi lá ver a chacina que horrorizou o mundo. Temer mandou seu ministro ir até lá. Se o leitor ler o que diz o Decreto nº 8668, de 11.2.2016 e que veio substituir o Decreto nº 6061, de 15.3.2007, o leitor verá que um dos muitos e muitos deveres que recai sobre o ministro da Justiça é planejar, coordenar e administrar a política penitenciária nacional. O que fez até agora Alexandre de Moraes no cargo de ministro da Justiça no tocante a este dever? O que fizeram seus antecessores?
Não existe política penitenciária nacional. Dizer que existe é uma farsa. Certamente, Moraes nem sabia da existência desse presídio. Não adianta mudar o nome de Ministério da Justiça para Ministério da Justiça e Cidadania, como aconteceu, porque cidadania é justamente o que falta e ao ministro e ao ministério reconhecerem ser devida a todos nós, população livre e encarcerada.
Mesmo condenado, o detento continua ser humano. Seus erros não lhe tiram a proteção das autoridades e da sociedade. Pelo contrário, deles exigem todas as atenções, cuidados e empenho no cumprimento do dever, legal e social, da sua recuperação. Vamos esperar as próximas horas. Não é a primeira vez que o presidente Temer tem motivos para demitir seu ministro da Justiça. Temer precisa mostrar ao povo brasileiro e ao mundo que ele não é frouxo. Precisa comprovar que Temer é apenas seu nome, civil e de batismo. Que ele é destemido, nada tem a temer, que não é temerário e não quer que sua passagem pela presidência entre para a História como tendo sido uma temeridade.
04 de janeiro de 2017
Jorge Béja
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