A fome em uma tarde de outono e uma parada num supermercado a poucos metros do trabalho foram os ingredientes iniciais do projeto com 10 medidas para aumentar o combate à corrupção e reduzir a impunidade. A iniciativa entrou no Congresso só em 2016, mas acabou desfigurada pelos deputados, com apoio dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL).
Naquela tarde de setembro de 2014, o procurador Diogo Castor de Mattos e o colega Deltan Dallagnol compravam biscoitos, iogurtes e refrigerantes no mercado no centro de Curitiba, a poucos metros da Procuradoria da República no Paraná. Na hora de pagar, vira-se para o amigo e lança uma ideia. Era preciso aproveitar o embalo da Operação Lava-Jato. Por isso, nada melhor que tentar mudar a legislação brasileira.
Mattos estava concluindo um trabalho de mestrado sobre o uso abusivo de habeas corpus nos crimes de colarinho branco, aquele recurso que pede a soltura do investigado. E estava convencido de que, se as regras do jogo continuassem frouxas, aquela seria só mais uma operação. Todas as demais continuariam fadadas à impunidade até serem anuladas por pequenos problemas processuais.
DELTAN NÃO GOSTOU – A argumentação era ótima. Mas o colega não gostou do que ouviu. “Isso não vai dar certo”, sentenciou Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato dentro do Ministério Público.
A ideia era até boa, mas os 10 outros colegas deles estavam cheios de trabalho. Na ocasião, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa prestava uma série de 80 depoimentos em que destruía a reputação do mundo político e empresarial, entregando parlamentares e empreiteiros num grande esquema de corrupção e propina na estatal. Toda a operação ganhava um rumo exponencial.
Como parar para redigir um projeto de lei para mudar a legislação penal contra os crimes de colarinho agora? Diogo Mattos recuou, ao menos aparentemente. Duas semanas depois, Deltan se arrependeu. Escreveu um e-mail aos colegas, dizendo que a ideia de Mattos era boa e necessária, apesar de todo o trabalho que tinham pela frente.
DUPLA TAREFA – A partir daí, além de investigar o caso, pedir e conseguir a prisão de 30 executivos de empreiteiras na 14ª fase da Lava-Jato, em novembro, e viajar à Suíça atrás de provas contra empresários e políticos sob suspeita, a tarefa do grupo foi pensar as regras de combate à corrupção no Brasil.
Várias dezenas de pessoas foram consultadas para elaborar o projeto. Uma fonte ouvida pelo Correio calcula que cerca de 40 promotores e procuradores de vários locais do país foram os principais autores dos textos e das diversas versões da minuta do pacote das Dez Medidas contra a Corrupção.
Os procuradores pediram ajuda aos colegas da Polícia Federal que faziam parte do grupo de trabalho da Lava-Jato. Não houve muitas contribuições. O Correio apurou que houve uma orientação institucional de não participar.
DISPUTA DE PODER – Além disso, o Ministério Público não recebeu bem algumas propostas porque entendeu que elas poderiam acirrar a disputa corporativa de poder dos dois órgãos. Uma das proposições era dar autonomia à PF para não sofrer com interferências hierárquicas, exatamente como acontece com a Procuradoria. No entanto, propostas de procuradores que tentavam escantear delegados — como acabar com o inquérito policial — também foram rejeitadas.
Mesmo sem verem os pleitos atendidos, os policiais apoiaram informalmente as propostas porque entendiam que elas ajudariam a melhorar o quadro de corrupção e impunidade no país.
Depois de várias revisões, em janeiro de 2015, o texto foi levado à Procuradoria-Geral da República.
FORO PRIVILEGIADO – O procurador Rodrigo Janot sugeriu a estratégia de não tratar da redução do foro privilegiado — a ideia era deixar apenas 15 pessoas com o benefício, os presidentes da República e das duas Casas do Congresso, os ministros do Supremo Tribunal Federal e o próprio procurador-geral. Na avaliação, isso poderia melindrar os ministros do STF. No lugar dessa sugestão, foram acrescentadas a criminalização do caixa 2 e a responsabilização dos partidos políticos.
A apresentação da proposta só ocorreu em 20 de março de 2015, em uma cerimônia na Procuradoria-Geral da República. Cerca de 20 projetos de lei estavam contidos em 10 temas para prevenir, controlar e punir com eficiência os crimes de colarinho branco, como a prisão em segunda instância, o aumento das penas de corrupção, a criação do crime de enriquecimento ilícito, a redução das possibilidades de se anular uma operação inteira e os recursos protelatórios.
ADULTERAÇÃO — As propostas enfim foram levadas ao Congresso, com apoio de 2,4 milhões de eleitora. E lá ficaram à espera da “adoção” por algum parlamentar. Enquanto isso, o procurador Deltan Dallagnol aproveitava os cursos que ministrava a colegas para divulgar a ideia. Depois, passou a fazer palestras sobre o tema. Numa delas, em uma faculdade, um cidadão o procurou e disse que aquela iniciativa só iria para frente se fosse da sociedade, e não apenas dos investigadores da Lava-Jato.
No fim das contas, porém, a Câmara dos Deputados deixaria vivo apenas o aumento de tempo de prisão por corrupção, mas incluindo a punição a investigadores e juízes considerados como autores de abusos de autoridade. E agora o pacote está aguardando decisão no Senado.
28 de dezembro de 2016
Eduardo Militão
Correio Braziliense
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