"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O INDULTO DE NATAL E A SOCIEDADE



A idéia de soltar presos por "indulto de Natal" mostra como são nossas leis "sociais": não poderiam ser mais apartadas da sociedade.

O ministro da Justiça Alexandre de Moraes cumpriu o protocolo e assinará hoje o Indulto de Natal, a famosa “saidinha” das cadeias para criminosos. O ministro afiançou que, desta feita, a concessão seguirá regras mais rígidas, o que significa, na prática, que a concessão seguirá regras, ponto final, acabou a sentença.

Afirmou Disse Alexandre de Moraes: “Pela primeira vez, nós separamos: de um lado, os crimes sem violência ou grave ameaça, e, de outro lado, crimes com violência ou com grave ameaça à pessoa. Quando todos os indultos anteriores, pouco importava isso. Na verdade, era o tamanho da pena só [que importava], sem fazer essa divisão”.

A rigor, há uma informação que salta aos olhos da população, pouco versada nos meandros do Código de Processo Penal: nunca antes na história desse país a saidinha temporária para Natal seguiu o critério de separar crimes com violência ou com grave ameaça à pessoa. Em outras palavras, em todos os momentos desde a instituição do Indulto, se o criminoso em questão fosse um contumaz, serelepe e cleptomaníaco ladrão de galinhas ou se fosse o Champinha, o Pedrinho Matador, o Maníaco do Parque, o Chico Picadinho, o Maníaco de Goiânia ou a Elize Matsunaga, todos poderiam receber o indulto. Porque, afinal, é Natal.

Os presos não tiveram saidinha de natal e tão queimando colchão. Chato quando você tá cumprindo pena por homicídio e não pode ver Papai Noel

Quem gosta de salsichas e acredita em leis, já nos alertara John Godfrey Saxe, em frase erroneamente atribuída à Otto von Bismarck, deveria saber como são feitas. Afinal, qual o apelo populacional da idéia da saidinha? Alguém, no povo, no povo que é povo, e não sindicalista manipulador de povo, por um acaso pensou um dia: “Olha, o Natal é a época do Advento, é um período de alegria e de festejar, então por que não botar estuprador, psicopata, pedófilo e seqüestrador na rua para celebrarmos o espírito de Jesus Cristo vindo para nos salvar?” (pronuncia-se melhor com os emoticons com olhos em formato de coração)

PM de Brasília alerta moradores sobre o saidão de Natal. C***lho! Se tem risco, deixa na jaula, p***!

Com mais rigor ainda, a bem da verdade, não é do Indulto de Natal que falamos, apesar de usar o mesmo termo. Trata-se da saída temporária, uma coisa mais difícil de explicar a alguém que viva na civilização do que o gosto de um guaraná com jabuticaba. Regida pela Lei 7.210/84 (Lei de Execucoes PenaisLEP), é uma saída que só pode ser fornecida nos seguintes casos:

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:

I – visita à família;

II – freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;

III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Parágrafo único. A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.

Em outras palavras, como visto no parágrafo I, se Pedrinho Matador, Chico Picadinho, Maníaco de Goiânia ou alguma rede de pedofilia tiver uma família, voilà, não precisa nem fazer supletivo ou artesanato com garrafa de PET, é só correr pro abraço, não precisa nem limpar o sangue.

A saidinha só é dada a quem já está preso no regime semi-aberto, o que deveria significar tão somente pessoas que cometem crimes cuja liberdade de trânsito do criminoso não represente nenhum risco à sociedade ou à justiça. Quem não paga pensão, impostos ou fraudadores em recuperação, por exemplo. No Brasil, é extremamente comum o preso estar no “semi-aberto”, ou mesmo a Justiça, quando finalmente consegue prender alguém, prendê-lo no regime aberto (sic).



O indulto mesmo é dado conforme o artigo 84, XII da Constituição Federal. É ele que permite que o presidente, num ato de bondade para com seus cidadãos, já bastante ofendidos por serem governados por ele durante todo um ano, escolha algum deles, que se comportou bem o suficiente durante o ano, para ter um abatimento de 10% no Imposto de Renda do ano seguinte. Ah, não: o indulto é dado apenas a criminosos, não a cidadãos que tenham se comportado tão bem que não tenham ido para a cadeia! O indulto de Natal, na verdade, significa que o preso nada mais deve à Justiça, está free to go, pronto, já é um cidadão novo.

Theodore Dalrymple, no texto A Frivolidade do Mal, que abre seu livro Nossa cultura… Ou o que restou dela, resume toda a questão brilhantemente logo em seu primeiro parágrafo:

Quando soltos, os presidiários frequentemente dizem que pagaram sua dívida com a sociedade. Isso é um evidente absurdo. O crime não pode ser tratado como um registro contábil. Você não pode pagar um valor ao contrair uma dívida muito maior, tampouco seria possível pagar adiantado um assalto a banco, oferecendo-se para cumprir a pena antes de cometer o crime. Talvez, metaforicamente, quando o preso sai da prisão, ele deixa o seu passado para trás; a dívida, porém, permanece.

Nosso mundo tem noção de Direito – e de justiça, que não raro se encontra terçando armas no espectro oposto ao do Direito – que advêm dos pensamentos que tratam como “humanismo” as penas as mais brandas possíveis, como no canônico Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria, quando o problema do mundo eram penas severas demais – uma realidade completamente inversa do Brasil atual, justamente graças a aplicação de um pensamento do absolutismo à realidade penal da democracia social coitadista.

Raríssimos são os que fogem da refração ideológica e buscam olhar para a realidade fora da Academia, e não tentá-la entender por livros “progressistas” com 3 séculos de idade. Quanto mais acadêmicos acham que falam em nome do povo (e como há Academia no Direito!), mais do povo se distancia. Um único candidato a presidência que prometa acabar com a saidinha para seqüestrador ver o Papai Noel vai surpreender a todos com sua vitória como nem Donald Trump conseguiu. Basta ver como o Brasil mal sabe quem é Alexandre de Moraes, mas já está se perguntando o que pode dizer desse sujeito que mal conhecem, mas já consideram pacas.



Neste caldo bizarro, quando algum ministro da Justiça, como o fez Alexandre de Moraes, não indulta todo preso que vê pela frente, a torto e a Direito, será chamado pela doutrina de totalitário nazista – e por qualquer pessoa normal de outra pessoa normal. Afinal, as leis, que deveriam refletir os costumes, valores, anseios e espírito coletivo do povo, poderiam estar mais apartadas do povo, do que quando a “bondade” dos políticos é apenas para tornar o Natal de muitas pessoas mais triste, com mortes, violência, estupros e risco de vida nas ruas?

Mircea Eliade já avisara, em O Sagrado e o Profano, que os elementos religiosos na formação da mentalidade secular permanecem lá, embora não nomeados. Se é para a lei democrática e demofóbica, que morre de medo de dizer ao povo quem foi que fez, praticar o tal indulto de Natal, que tal seguir a narrativa bíblica? Por que não aparece a nossa versão de Pôncio Pilatos, trajado a caráter nesta época festiva, e oferece o indulto, secundum morem, a quem a multidão democrática desejar?

Pode rolar um leião interessante. Do meu lado direito, este homem, acusado de estupro, pedofilia, seqüestro de criança e atentado violento ao pudor! Do meu lado esquerdo, este assassino de policial, assaltante de pobre, torturador e homicida de avó de família! Quem vocês preferem? Bem, se a multidão não preferir ninguém, tente comparar algum deles a José Dirceu. Talvez assim eles tenham mais chance em suas vagas como bons ladrões. Do contrário, tal lei, ou costume constitucional a ser seguido, simplesmente continuará mandando uma banana para a sociedade.


28 de dezembro de 2016
flávio morgenstem
senso incomum

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