"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

GILMAR MENDES E O HOMEM DA CAPA PRETA

“Gilmar Mendes transmutou sua toga de ministro do STF em capa preta de político da Baixada Fluminense.”


Dez políticos foram assassinados nos últimos nove meses na baixada fluminense – entre mandatários e pré-candidatos. Os crimes ocorreram em Seropédica, Paracambi, Nova Iguaçu e Duque de Caxias. Vereadores, ex-vereadores e postulantes ao cargo foram mortos em circunstâncias parecidas: “emboscados” chegando ou saindo de casa, dentro de seus carros, por saraivadas de tiros de pistola. Isso poderia passar despercebido como parte do inigualável escore diário de mortes do Brasil, mas a polícia investiga uma ligação entre os crimes. A Baixada Fluminense e o Rio estão entre os lugares mais violentos do país – portanto não surpreende que, lá, política também seja feita tradicionalmente na base da bala. O cinema nacional imortalizou um dos protagonistas desse modo peculiar de fazer política: Tenório Cavalcanti.

Conhecido como “o deputado pistoleiro”, Cavalcanti é uma figura “folclórica” na pior acepção do termo. Começou como vereador em Nova Iguaçu e fez fama assassinando opositores. Dizia-se que, com um exército de capangas, também cobrava pela “proteção” tanto de estabelecimentos lícitos como de negócios ilegais. O delegado paulista Albino Imparato foi destacado para impor limites à atuação de Tenório Cavalcanti – dependendo da fonte, a mando da “elite” da Baixada ou por ordem direta de Getúlio Vargas. Imparato perdeu a parada: foi metralhado pelo primo de Cavalcanti, a mando deste. Cavalcanti chegou a exercer mandato de deputado federal e, em outro lance “folclórico”, sacou o revólver em plenário tencionando atingir Antônio Carlos Magalhães, com quem havia acabado de trocar acusações. ACM teria urinado nas calças – mas outros parlamentares impediram Cavalcanti de atirar. O político foi representado por José Wilker no filme “O Homem da Capa Preta”, de 1986: seu figurino extravagante de mafioso – terno de risca-de-giz e chapéu – é acentuado pela capa preta sob a qual levava uma submetralhadora alemã MP-40, que ele chamava carinhosamente de “Lurdinha”. É: se o Brasil não existisse, alguém teria que inventá-lo.


Décadas depois, o Brasil novamente parou para acompanhar “homens de capa preta” – mas, desta feita, discutindo na televisão, muitas vezes em termos técnicos herméticos para a população, o destino dos acusados pelo Mensalão, o fio da meada que nos trouxe ao Petrolão e à Operação Lava Jato. Atuando de forma destemida, um dos “homens da capa preta”, Joaquim Barbosa, chegou a ser apelidado “Batman” por populares: a toga de ministro do supremo de fato pode lembrar o uniforme do Cavaleiro das Trevas. Mas, para o apelido, isso foi circunstancial. A população apoiou Barbosa e o distinguiu com a alcunha de super-herói porque o ministro agiu de maneira desassombrada e categórica, sem deixar margem a qualquer questionamento de que estaria “aliviando” para aqueles que o conduziram ao cargo, demonstrando “gratidão”. Em uma sessão do STF, Barbosa discutiu com o então presidente da corte, Gilmar Mendes, e disse o seguinte: “Vossa excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso“. Na época, o arroubo de Barbosa foi posto na conta de seu temperamento intempestivo – o ministro já havia discutido com outros colegas em plenário e defendido de maneira bastante aguerrida seus pontos de vista.

Barbosa se aposentou logo após o julgamento do Mensalão. O tempo passou, o Mensalão ficou, veio a operação Lava Jato: a fala nervosa do “Batman”, que poderia ter se perdido nos arquivos da TV Justiça e para sempre esquecida, voltou à mente de todos que se lembram do diálogo – não por novas descobertas sobre o Mensalão, mas por conta da lamentável reação de Gilmar Mendes ao vazamento da delação premiada de Léo Pinheiro, dono da empreiteira OAS. Pinheiro mencionou, em sua delação, o ministro Dias Toffoli, contando que teria destacado um engenheiro para acompanhar obras de impermeabilização na casa do magistrado – como a reportagem de Veja narrou em detalhes. Toffoli saiu na capa da revista do último domingo. Poucos dias depois, Gilmar Mendes reagiu, acusando os procuradores da Lava Jato pelo vazamento e afirmando o seguinte: “Isso já ocorreu antes no Brasil. O cemitério está cheio desses heróis”. Para ele, o problema não é o vazamento em si: mas a própria investigação. Prossegue o ministro: “Não há nenhuma censura imputável ao ministro Toffoli, mas tudo indica que ele está na mira dos investigadores. Em razão, provavelmente, de decisões que (Toffoli) tem tomado e os têm desagradado.”

Como em uma cebola, há várias camadas nas falas de Gilmar Mendes. A primeira, e mais chamativa, é a menção a um “cemitério”: houve quem tenha dito que não se tratou de nada além de um “arroubo retórico” parecido com o do “Batman”, já que ele mencionou, na seqüência, procuradores da república que caíram no ostracismo após cometer abusos e equívocos, e que foram “mortos” apenas metaforicamente. Mas a palavra tem seu significado inafastável: “cemitério” é onde se enterram os mortos, e Gilmar Mendes saiu dessa muito menor do que entrou, justificando que se eliminem desafetos incômodos, como Tenório Cavalcanti fazia. Sua fala é clara: é a expressão de alguém que enxerga a eliminação física do adversário como um meio aceitável e justificável em certas circunstâncias. “O cemitério está cheio”, afinal, de gente que desafiou esquemas poderosos: a juíza Patrícia Acioli, que presidia processos que investigavam a atuação de milícias – de novo! – na Baixada Fluminense, foi executada de maneira idêntica aos políticos mortos lá nos últimos meses, anos e décadas. Giovanni Falcone, outro colega de Mendes, também foi morto a mando dos interesses escusos que tentava desbaratar. É disso que Gilmar Mendes estava falando.

Mas a manifestação do ministro não se limitou a isso: ele justificou sua fala com argumentos contrários ao “abuso de poder” e em defesa do “estado de direito”, se postando contra “excessos” que teriam sido cometidos pelos procuradores da Lava Jato. Eventual abuso de poder é sempre lamentável – mas há leis para tratar do assunto. “Cemitério” não é uma alternativa legal ao incômodo causado por investigações que prejudiquem interesses poderosos. Quando falou como falou, Gilmar também deu mostra de outro aspecto lamentável da magistratura brasileira: o corporativismo. A reação foi à menção do colega em uma delação premiada, e, puxando mais uma camada da cebola, Gilmar Mendes parece querer dizer que ele e seus colegas são intocáveis e inquestionáveis: qualquer menção a eles em uma delação premiada seria aprioristicamente falsa. Gilmar, seu pupilo e os demais “homens da capa preta” estariam acima da crítica e imunes à investigação criminal – que seria coisa de gente “abusada”, que mereceria, só por isso, ser mandada ao “cemitério”. É: se o Brasil não existisse, alguém teria que inventá-lo.

Um ministro do Supremo Tribunal Federal não pode ser comportar como faria um integrante da quadrilha de Al Capone: prometendo a morte, ainda que de forma velada, a quem os questiona. A essa altura, pouco importa quem tenha vazado a delação de Léo Pinheiro: o fato fez com que Gilmar Mendes se revelasse, rasgando a toga e brandindo sua metralhadora metafórica, pondo o interesse corporativo acima de qualquer ideal republicano. O que se esperaria de um jurista capaz de ler textos sobre direito constitucional escritos em alemão? Dizer que “devemos aguardar as investigações”, que “a lei deve prevalecer” ou que “ninguém está imune ao escrutínio das autoridades”. Mas não: Gilmar Mendes recorreu à intimidação, à ameaça, à bravata digna de um Tenório Cavalcanti. Gilmar Mendes transmutou sua toga de ministro do STF em capa preta de político da Baixada Fluminense. Como não há outro tribunal a recorrer depois do STF, roguemos a Deus que nos ajude!


25 de agosto de 2016
implicante

Nenhum comentário:

Postar um comentário