"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 31 de julho de 2016

A FALTA DE VERGONHA E A AUSÊNCIA DE CULPA NA CORRUPÇÃO BRASILEIRO

Ilustração do Duke, reprodução de O Te

Depois que surgiram a psicanálise e o estruturalismo, não podemos mais nos restringir ao consciente e aos ditames da razão na análise dos fenômenos humanos, pessoais e coletivos. Há universos pré-consciente, subconsciente e inconsciente (pessoal e coletivo), subjacentes a nossas práticas, a serem considerados. Quero me ater apenas a duas vertentes que influenciam nossos comportamentos. São legados das duas principais culturas ancestrais que subjazem em nosso inconsciente coletivo e nos ajudam a entender fenômenos atuais, como a corrupção que atravessa o corpo social brasileiro: as culturas grega e judaico-cristã.

Da cultura grega herdamos o sentimento de vergonha. O conceito correlato é o de herói. Ter vergonha, para os gregos, consistia em se frustrar em qualquer empreendimento, como na guerra e na convivência social. Triunfar e ser bem-sucedido preenchia os requisitos do herói.

Hoje, essa categoria está presente em nossa sociedade. É um herói o jogador que conseguiu o gol da vitória do time de nossa predileção. Vergonha coletiva é o Brasil perder de 7 a 1 na Copa do Mundo. A vergonha tem a ver com a imagem que projetamos socialmente. Ela tem que causar admiração e respeito. Caso contrário, faz as pessoas se envergonharem.

A outra vertente é constituída pela tradição judaico-cristã. A categoria central é a culpa. Geralmente, colocamos a culpa nos outros. Se fracassamos num negócio, é por culpa da crise econômica. Se o matrimônio se desfez, é por culpa de um dos parceiros. A culpa atinge a interioridade e afeta a consciência. A repercussão não é tanto diante dos outros, que talvez nem saibam de nosso malfeito, mas diante do tribunal da consciência, que nos remete logo a Deus.

JUSTO E RETO – O oposto à culpa é o sentimento de ser justo e reto, dois conceitos definidores de uma pessoa “justa” (santa) no sentido bíblico. Sentir vergonha e dar-se conta da culpa constitui as bases de uma consciência ética. Não precisar se envergonhar diante dos outros e não se sentir culpado diante da consciência e de Deus são sinais de retidão de vida e de uma atitude ética correta.

Qual é nosso problema concernente à escandalosa corrupção ativa e passiva no Brasil? É a acabada falta de vergonha e a completa ausência de culpa dos corruptos e corruptores diante de seus malfeitos. Mesmo surpreendidos no ato de corrupção, ouvimos sempre: “Não sou culpado de nada”. E trata-se de pessoas notória e comprovadamente corruptas. Perderam a noção total de culpa e não dão nenhuma importância à vergonha pública de seus atos.

Raramente, ouve-se a indignação ética da sociedade: os corruptos nem se incomodam e continuam em seu desfrute.

VERGONHA E RUBOR – Aristóteles estabelecia a vergonha e o rubor do rosto como um indicativo da presença de uma consciência ética. Sem essa vergonha, a pessoa era realmente sem-vergonha, mau-caráter, sem sentido dos valores. Essa falta de vergonha e de sentimento de culpa se transformou, entre nós, no Brasil, numa espécie de segunda natureza, tornada uma prática usual. Por isso, quase todo o tecido social é contaminado pelo vírus da corrupção. Ela chegou nos dias atuais a níveis tão escandalosos que não podem mais ser tolerados.

A corrupção como prática pessoal e social, sem sermos moralistas e utópicos, tem que ser banida e reduzida a níveis compatíveis com a condição humana decaída e corruptível. Há que se resgatar o sentimento de vergonha e de culpa, sem o que nossos esforços serão inócuos.


31 de julho de 2016

Leonardo Boff
O Tempo

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