Você certamente tem bons amigos deprimidos, pena que eles andam sumidos. Nada no mundo é mais importante que alisar a própria dor. Acarinham o próprio desalento como se a bola de pelo no peito fosse um gatinho bebê. Ser infeliz é emprego pra muita gente e é resposta definitiva e absoluta pra qualquer pergunta. Não fui porque sou triste, não fiz porque sou triste, caguei pro mundo porque sou triste. É de uma arrogância enorme (além, é claro, de muitas vezes ser uma doença séria) mas, truqueiros que só, alguns tristonhos ainda saem como vítimas de suas desfeitas: ele querendo morrer e você convidando pra aniversários? Quem é o errado aqui?
Por mais anos feitos de terapia (principalmente se você não for egoísta-hedonista-sexualizado demais pra entender como a vida é chata), ter amigos sorumbáticos é flertar de alguma forma com a culpa. "Poxa, ele de cama há dois dias e eu tive a cara de pau de levantar? Que bela bosta de camarada eu sou?!". Infelizmente, só pra usar um advérbio que orna com a coisa toda, são eles os mais interessantes: tem coisa mais sem sal e insuportável que gente leve e boba alegre? Eu não aguento cinco minutos os tipinhos que suam fluoxetina natural, cheiram a arco-íris, um sovaco pirulito com cinquenta tons de anilina (que dádiva ser simplório, mas que vidinha merda ter uma vida boa). Todavia, olha que difícil: os felizes a gente não atura, os infelizes a gente até atura, mas eles não vieram.
Adoro gente triste. Mas me refiro aos desgostosos boa gente, eticamente responsáveis e, quando agraciados pelo que há de melhor no mundo, autoirônicos. Respeito por demais os deprimidos ao estilo "foi mal, mas sou um ferrado de cabeça", mas tenho cada vez mais preguiça dos infelizes "o mundo me deve". Os depressivos dedo na cara. Os eternamente magoadões com aquele chefe, aquela namorada, aquele pai. Ele tava lá, tranquilo, brilhando na saúde mental, o outro é que estragou tudo sendo imperfeito e tendo vida própria. Ele era pra ser radiante, mas teve a falta de sorte de nascer "numa família que". Ele era pra ser bem-sucedido, mas o destino lhe pregou essa peça e ele acabou trabalhando "num escritório que". Só respeito a tristeza corajosa, a tristeza que olha pra si, deita num divã ou faz uma música. O lastimoso "eu sou" é o grande herói de nossos tempos de tarjas pretas, já o soturno "o mundo é" abraçou a indolência psíquica, temeroso de conter as próprias tripas.
Se você faz piada pra animar o deprimido cruel, não está respeitando o tamanho de sua dor; se você fica quieto, não está fazendo nada para que o seu desencanto passe; se você fala sem parar, não está dando espaço para que ele vomite suas mazelas; se você ousa ficar cabisbaixo, está tentando competir com o grande protagonista da desgraça; se você some, o deixou sucumbir solitário; se você aparece, ele só queria ficar sozinho e você não entende nada. A pessoa que sente uma dor e não entende que ela não é culpa do resto do mundo não merece a sua pena: merece um beliscão. Mas, se você der um beliscão, coitado de você, achando que pode causar algum pesar em quem já sente tanto. E, se você não der o beliscão, não adiantou nada: na fantasia do desolado selvagem você, impiedoso, o está beliscando sem parar há séculos. Tentar ajudar o infeliz cruel é dar mais sopa de lodo para um estômago sem fundo. É se achar, metido que só, o super-herói de uma cidade que não existe. Se bobear, acabamos mais frustrados que eles.
19 de junho de 2015
Tati Bernardi
Por mais anos feitos de terapia (principalmente se você não for egoísta-hedonista-sexualizado demais pra entender como a vida é chata), ter amigos sorumbáticos é flertar de alguma forma com a culpa. "Poxa, ele de cama há dois dias e eu tive a cara de pau de levantar? Que bela bosta de camarada eu sou?!". Infelizmente, só pra usar um advérbio que orna com a coisa toda, são eles os mais interessantes: tem coisa mais sem sal e insuportável que gente leve e boba alegre? Eu não aguento cinco minutos os tipinhos que suam fluoxetina natural, cheiram a arco-íris, um sovaco pirulito com cinquenta tons de anilina (que dádiva ser simplório, mas que vidinha merda ter uma vida boa). Todavia, olha que difícil: os felizes a gente não atura, os infelizes a gente até atura, mas eles não vieram.
Adoro gente triste. Mas me refiro aos desgostosos boa gente, eticamente responsáveis e, quando agraciados pelo que há de melhor no mundo, autoirônicos. Respeito por demais os deprimidos ao estilo "foi mal, mas sou um ferrado de cabeça", mas tenho cada vez mais preguiça dos infelizes "o mundo me deve". Os depressivos dedo na cara. Os eternamente magoadões com aquele chefe, aquela namorada, aquele pai. Ele tava lá, tranquilo, brilhando na saúde mental, o outro é que estragou tudo sendo imperfeito e tendo vida própria. Ele era pra ser radiante, mas teve a falta de sorte de nascer "numa família que". Ele era pra ser bem-sucedido, mas o destino lhe pregou essa peça e ele acabou trabalhando "num escritório que". Só respeito a tristeza corajosa, a tristeza que olha pra si, deita num divã ou faz uma música. O lastimoso "eu sou" é o grande herói de nossos tempos de tarjas pretas, já o soturno "o mundo é" abraçou a indolência psíquica, temeroso de conter as próprias tripas.
Se você faz piada pra animar o deprimido cruel, não está respeitando o tamanho de sua dor; se você fica quieto, não está fazendo nada para que o seu desencanto passe; se você fala sem parar, não está dando espaço para que ele vomite suas mazelas; se você ousa ficar cabisbaixo, está tentando competir com o grande protagonista da desgraça; se você some, o deixou sucumbir solitário; se você aparece, ele só queria ficar sozinho e você não entende nada. A pessoa que sente uma dor e não entende que ela não é culpa do resto do mundo não merece a sua pena: merece um beliscão. Mas, se você der um beliscão, coitado de você, achando que pode causar algum pesar em quem já sente tanto. E, se você não der o beliscão, não adiantou nada: na fantasia do desolado selvagem você, impiedoso, o está beliscando sem parar há séculos. Tentar ajudar o infeliz cruel é dar mais sopa de lodo para um estômago sem fundo. É se achar, metido que só, o super-herói de uma cidade que não existe. Se bobear, acabamos mais frustrados que eles.
19 de junho de 2015
Tati Bernardi
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