Que cara triste, Guerra.
“O exame de colonoscopia. Ou, para ser mais exato, a lenta e humilhante preparação: os laxantes tomados na noite anterior, os cinco ou oito copos de horrendos ‘sucos’ laxativos na manhã fria e nublada. Nessa longuíssima manhã que invade a tarde, o paciente esvazia as tripas e a alma, e se lembra tristemente do macarrão insosso digerido ontem...”
Pobre amigo e poeta Guerra, o Guerrinha de outros carnavais. Eu disse que já tinha feito esse exame umas três vezes, e ficava deprimido só de pensar no preparo. Por que você me chateia com essas lembranças? No mês passado, aquele poema...
“Não quero chatear ninguém”, ele me interrompeu. “Mas sabe o que penso desse exame? É o grande momento de vingança dos intestinos, que nos parecem dizer que a vida não se limita à boca, ao desejo, aos olhos e ao pensamento, e que ela, a vida, passa também por esses dutos internos, que no meio da tarde serão filmados e examinados por um médico. Descobri também que a política entra por esses dutos...”
Acho que você não está bem, Guerrinha. Vamos separar a política dos intestinos, os finos e os grossos.
“Por que separar? Tudo está relacionado com a política... Durante a preparação do exame, entre duas corridas ao banheiro, li que os deputados aprovaram a construção de um shopping center... Mais uma aberração arquitetônica, e isso numa área não comercial de Brasília. Vão enterrar de vez o projeto de Lúcio Costa. Você, que é arquiteto de formação, não vai dizer nada sobre essa impostura? O que acha?”
Não acho mais nada, meu amigo. E nem sei o que dizer... A destruição de Brasília é irreversível... Esse shopping vai ser o templo de consumo mais cafona do Hemisfério Sul. É apenas mais um crime urbano... Na minha última visita à capital, vi torres horríveis no setor hoteleiro, vi a ocupação bárbara das margens do Paranoá, a desfiguração total das casas da W3 sul, com seus puxadinhos e fachadas infames. Brasília nasceu condenada. A grilagem de terras no plano piloto começou durante a ditadura e nunca foi interrompida...
“Mas agora o presidente da Câmara quer vingar uma promessa de campanha: a construção de um shopping no coração da capital da República. A grande promessa será a grande cartada. Essa reforma política é mais embuste da maioria... Os presidentes da Câmara e do Senado... Os dois altivamente alheios à opinião e aos anseios do povo brasileiro... Legislam com chantagens pérfidas e as ameaças veladas...”
Ameaças veladas ou escancaradas? Guerra, meu querido amigo, toda essa sujeira vem de muito longe. E por falar em sujeira, como estão os intestinos?
“O médico tirou um adenoma. Estou lascado, vou ter que fazer esse exame daqui a um ano.”
Um ano é uma promessa de eternidade, Guerra. Vamos comemorar com um bom vinho e continuar a leitura do mês passado. Aquele poema de Auden: Em Memória de Sigmund Freud.
“Ainda me lembro de uns versos: “Uma voz racional emudeceu. Sobre sua tumba, a família do Impulso lamenta um ente querido...”.
19 de junho de 2015
Milton Hatoum
“O exame de colonoscopia. Ou, para ser mais exato, a lenta e humilhante preparação: os laxantes tomados na noite anterior, os cinco ou oito copos de horrendos ‘sucos’ laxativos na manhã fria e nublada. Nessa longuíssima manhã que invade a tarde, o paciente esvazia as tripas e a alma, e se lembra tristemente do macarrão insosso digerido ontem...”
Pobre amigo e poeta Guerra, o Guerrinha de outros carnavais. Eu disse que já tinha feito esse exame umas três vezes, e ficava deprimido só de pensar no preparo. Por que você me chateia com essas lembranças? No mês passado, aquele poema...
“Não quero chatear ninguém”, ele me interrompeu. “Mas sabe o que penso desse exame? É o grande momento de vingança dos intestinos, que nos parecem dizer que a vida não se limita à boca, ao desejo, aos olhos e ao pensamento, e que ela, a vida, passa também por esses dutos internos, que no meio da tarde serão filmados e examinados por um médico. Descobri também que a política entra por esses dutos...”
Acho que você não está bem, Guerrinha. Vamos separar a política dos intestinos, os finos e os grossos.
“Por que separar? Tudo está relacionado com a política... Durante a preparação do exame, entre duas corridas ao banheiro, li que os deputados aprovaram a construção de um shopping center... Mais uma aberração arquitetônica, e isso numa área não comercial de Brasília. Vão enterrar de vez o projeto de Lúcio Costa. Você, que é arquiteto de formação, não vai dizer nada sobre essa impostura? O que acha?”
Não acho mais nada, meu amigo. E nem sei o que dizer... A destruição de Brasília é irreversível... Esse shopping vai ser o templo de consumo mais cafona do Hemisfério Sul. É apenas mais um crime urbano... Na minha última visita à capital, vi torres horríveis no setor hoteleiro, vi a ocupação bárbara das margens do Paranoá, a desfiguração total das casas da W3 sul, com seus puxadinhos e fachadas infames. Brasília nasceu condenada. A grilagem de terras no plano piloto começou durante a ditadura e nunca foi interrompida...
“Mas agora o presidente da Câmara quer vingar uma promessa de campanha: a construção de um shopping no coração da capital da República. A grande promessa será a grande cartada. Essa reforma política é mais embuste da maioria... Os presidentes da Câmara e do Senado... Os dois altivamente alheios à opinião e aos anseios do povo brasileiro... Legislam com chantagens pérfidas e as ameaças veladas...”
Ameaças veladas ou escancaradas? Guerra, meu querido amigo, toda essa sujeira vem de muito longe. E por falar em sujeira, como estão os intestinos?
“O médico tirou um adenoma. Estou lascado, vou ter que fazer esse exame daqui a um ano.”
Um ano é uma promessa de eternidade, Guerra. Vamos comemorar com um bom vinho e continuar a leitura do mês passado. Aquele poema de Auden: Em Memória de Sigmund Freud.
“Ainda me lembro de uns versos: “Uma voz racional emudeceu. Sobre sua tumba, a família do Impulso lamenta um ente querido...”.
19 de junho de 2015
Milton Hatoum
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