"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

NINGUÉM GOSTA DE NOVELA


Meu primeiro encontro com ela foi há muito, muito tempo. Basta dizer que a televisão ainda era televizinha. Se eu acrescentar que nessa época as pessoas conversavam e sabiam conversar, você talvez nem consiga situar-se no tempo e no espaço; ou talvez pudesse dizer espaço-tempo, só para lembrar Einstein.

Nessa época longínqua, muito longínqua, fazer uma visita e não participar da conversa era grosseria, falta de educação. Por aí você percebe que estou falando de outro mundo, que era civilizado sem precisar de tecnologia digital, computador, celular, televisão. Além de civilizado, era educado, decente, humano, tranquilo, pensativo, agradável. Como estamos longe de tudo isso!...

Você já concluiu que hoje o alvo das minhas flechas é a tecnologia. Mais especificamente, a televisão. Começo por contar-lhe as circunstâncias em que ela me foi apresentada. Ou melhor, nem houve apresentação, ela se intrometeu.

Eu havia terminado as provas do vestibular, e os resultados estavam previstos para daí a uma semana. Um amigo convidou-me para visitar com ele a fazenda dos pais, onde descansamos agradavelmente quatro dias. Um dos dias foi dedicado a visitar os parentes que residiam na cidade. Fomos muito bem recebidos em todas as casas, exceto uma. Nada contra os anfitriões, que também nos receberam muito agradavelmente. Quem não recebeu bem fui eu.

(Como!? Então você era o visitante, e diz que não os recebeu bem?)

Era eu o visitante, sim, na companhia do meu amigo. Mas o fato é que não agi como visitante; ao menos como um que possa considerar-se educado. O que aconteceu então? É que havia na sala uma televizinha, onde tolos diziam tolices como as que depois ocuparam cadeira cativa. Reluzentemente iluminada, e até então desconhecida para mim, a curiosidade desviou minha atenção, desligando-me dos donos da casa. Minha sorte foi que o meu amigo falava pelos quatro cotovelos (os joelhos dele também falavam), e supriu a minha deseducada ausência mental.

Parece que o meu amigo não percebeu a minha distração, mas quando ele depois comentou trechos da conversa, constatei que não me lembrava de quase nada. Foi assim que passei a encarar a televisão como minha inimiga pessoal.

Enquanto isso os professores examinavam as provas, e devem ter gostado das minhas, pois na volta fui surpreendido com um terceiro lugar entre mais de oitocentos candidatos.

Durante o curso universitário, não me sobrava tempo para defrontar-me com a televizinha. Concluído o curso, o exercício profissional deixou-me menos tempo ainda. Enquanto isso a TV foi ocupando o lugar de visita não convidada em todas as casas e emudecendo os familiares. Mas a minha ferrenha inimizade permaneceu e há de permanecer em constante crescimento, mesmo que no final a avalanche televisiva me marginalize como derrotado. Sou seu detrator contumaz, principalmente devido à destruição da vida de família, e mesmo da própria família. Não perco oportunidade para deblaterar contra essa ação deletéria, mas venho constatando este fenômeno estranho: embora todos tenham televisão, ninguém gosta dela.

(Esse sujeito é maluco! Quem é que não gosta de televisão?!)

Caro leitor, não estou falando só da minha experiência, da minha idiossincrasia (dê uma olhada no dicionário). Digo isso com fundamento estatístico, baseado em pesquisa de campo. Com frequência algum amigo me pergunta se vi tal coisa na televisão. Respondo comodamente, desafiadoramente:

— Não vi, porque não vejo televisão.

— Como!? Você não tem televisão?!!

— Não tenho, nunca tive, nunca vou ter. E se alguém me der uma de presente, ela vai para o lixo, fazer companhia aos muitos outros lixos que ela despeja dentro de casas como a sua.

Trombadas assim são muito eficientes. Logo o atingido procura atenuar sua culpa no delito que denunciei. Mais ou menos assim:

— É... de fato a televisão leva pra dentro de casa muito lixo, como nas novelas. Eu só tenho a minha para ver noticiário, um futebolzinho...

(Uhn! Sei! Onde foi mesmo que deixei minha aljava? Ah!! Lá vai flecha!)

— E junto com isso entra todo o outro lixo, não é?

Bem, leitor, vamos abrir as exceções de praxe, e ponderar que você não anda tão mal, se gosta de noticiário e de um futebolzinho. Mas junto com isso entram torrentes de imundícies, como novelas agressivas, humoristas desqualificados, propagandas inescrupulosas, modelos seminus e analfabetos loquazes. Então vamos colocar a coisa assim: Você não gosta de novela, como todo mundo, por isso vai se desfazer da televisão para não ter em casa esse lixo; e também muitos outros que o acompanham.


22 de maio de 2015
Jacinto Flecha

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