"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 8 de março de 2015

O DEBOCHE É PERIGOSO

Classe política não vê a raiva que está nas ruas

Nas últimas semanas, as autoridades brasileiras debocharam além dos limites. Cada dia a população tem nova surpresa.

O presidente da Câmara oferece aos deputados o direito de custearem viagens de suas esposas com recursos públicos e apresenta o projeto para um novo edifício ao custo de R$ 1 bilhão; um juiz é fotografado dirigindo o carro de luxo de um réu; uma escola de samba ganha o título graças a financiamento de um ditador estrangeiro; a presidente da República coloca a culpa da degradação da Petrobras no antecessor que deixou o governo há 12 anos; outro ex-presidente ameaça colocar um exército na rua; o ministro da Justiça recebe advogados de réus do maior caso de corrupção da história; o ministro da Fazenda adota medidas totalmente opostas às promessas de campanha da candidata; o governo adota o slogan “Pátria educadora” mas corta parte importante do orçamento para a educação; as tarifas de eletricidade reduzidas no período eleitoral são substancialmente elevadas logo depois da eleição, o mesmo acontecendo com os preços dos combustíveis.

Como se esses deboches ativos não bastassem, a classe política se comporta com um generalizado deboche passivo: não reconhece a dimensão da crise, não debate suas causas nem aponta caminhos para reorientar o rumo do Brasil.

A sensação é de que a política está doente: não ouve, não vê, nem raciocina.

Não ouve as vozes do futuro chamando o Brasil para um tempo radicalmente diferente, em que a economia deverá ser baseada no conhecimento, produzindo bens de alta tecnologia; em que a principal infraestrutura deverá ser educação, ciência e tecnologia. Não ouve as vozes do exterior que mostram que não há futuro isolado e que precisamos agir para ingressar no mundo da competitividade internacional, na convivência econômica e cultural com o mundo global. E, pior, não ouve o clamor das ruas que indicam a necessidade de romper com os vícios do presente e reorientar o rumo para um futuro com economia dinâmica e integrada, e uma sociedade harmônica e sustentável.

A política tampouco vê as dívidas que os políticos têm com o país: com os pobres sem chance, com as crianças sem futuro e os jovens sem emprego; com a natureza depredada; a dívida decorrente da corrupção generalizada. Ao não reconhecer suas dívidas, a classe política não vê a raiva que está nas ruas.

Tudo isso leva a um comportamento esquizofrênico, pelo qual, de tanto vender ilusões, o governo e seus partidos passam a acreditar nelas. E os demais políticos se acostumam a elas.

Talvez esta seja a explicação para o deboche: não vemos, não ouvimos, nem pensamos. Até que o fim da paciência do povo nos desperte. Mas o custo poderá ser muito alto para a democracia, para a eficiência econômica, para a harmonia social e a sustentabilidade ecológica. Salvo se o despertar vier antes, com a descoberta de que o deboche é muito perigoso, como percebeu o presidente da Câmara, forçado a voltar atrás em sua decisão inicial.

O8 de março de 2015
Cristovam Buarque, O Globo

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