O 'PIB do povo' cresceu mais do que o 'PIB dos economistas', mas à custa da piora nas contas externas
Na terça feira da semana passada, ampla reportagem do jornal "Valor" noticiou o entusiasmo do titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e meu colega da FGV, Marcelo Neri, com os avanços sociais na última década e, em particular, no quadriênio de Dilma Rousseff.
Adicionalmente o ministro apontou a defasagem que há entre a evolução do produto per capita do país, também chamado de "PIB dos economistas", e a renda pessoal medida pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, o "PIB do povo".
Entre 2003 e 2012, ano da Pnad mais recente disponível, o PIB per capita cresceu em termos reais 28%, enquanto a renda mediana domiciliar per capita teve aumento de 78%! Houve defasagem na velocidade de crescimento dos PIBs "do povo" e "dos economistas" de 50 pontos percentuais.
Marcelo é reconhecido como um dos melhores microeconomistas da área de economia do trabalho no Brasil. Microeconomistas trabalham em geral com bases de dados muito amplas e estudam em detalhe a natureza de cada indivíduo. Diz-se que olham as árvores sem se preocupar com a floresta. Já os macroeconomistas estudam a floresta sem se preocupar com cada uma de suas árvores.
O risco da análise macroeconômica é não notar pequenas dinâmicas que aos poucos ganham corpo e acabam por ter impactos agregados importantes.
Já os microeconomistas correm o risco de não reconhecer que a dinâmica da árvore pode depender de fatores agregados que estejam a atingir toda a floresta. Por exemplo, é possível que a árvore esteja crescendo mais rápido porque as condições climáticas alteraram-se transitoriamente, em favor do crescimento. Quando o clima retornar ao padrão usual, a bonança perderá fôlego.
Parece que esse longo período no qual o PIB do povo andou além do PIB dos economistas foi acompanhado da construção de desequilíbrios em outras variáveis macroeconômicas que colocam em xeque a manutenção do processo.
Entre 2003 e 2012, o deficit de transações correntes como proporção do PIB elevou-se em 3,2 pontos percentuais. Como mostrei na semana passada, nesse período os termos de troca, isto é, o preço da pauta exportadora em unidades da pauta importadora, cresceu mais de 20%. Conta simples sugere que, se não tivesse havido a alteração dos preços em nosso favor, a variação do deficit de transações correntes entre 2003 e 2012 seria de mais de sete pontos percentuais do PIB, visto que nesse período a absorção (consumo e investimento dos setores público e privado) cresceu 60%, e o produto, 40%.
Ou seja, parece haver associação entre o fortíssimo crescimento do PIB do povo além do PIB dos economistas e a elevação do deficit externo, que saiu de um superavit de 1,76% do PIB em 2004 para um deficit hoje na casa de 4%.
Para verificar essa possível associação, tomei as Pnads de 1981 até 2012. Calculei a renda individual mediana de todos os trabalhos a preços de 2012. Essa será a minha medida do PIB do povo. Para o PIB dos economistas, considerei o PIB per capita a preços de 2012.
Para cada um dos anos, tomei a diferença entre as taxas de crescimento do PIB do povo e do PIB dos economistas entre 1981 e a referida data. Sempre que essa estatística for positiva, significa que, entre 1981 e a referida data, o PIB do povo andou além do PIB dos economistas. Quando for negativa, o PIB do povo andou aquém do PIB dos economistas. Chamei essa variável de defasagem entre os PIBs.
A má notícia é que a correlação entre o deficit de transações correntes e a defasagem entre os PIBs é de 75%. Desde a década de 1980, três quartos da variação do PIB do povo não explicada pela trajetória do PIB dos economistas está associada à piora das contas externas.
Enquanto os microeconomistas do governo municiam a presidente e seus auxiliares com informações positivas associadas ao bom desempenho do PIB do povo, seria oportuno que os macroeconomistas do governo se debruçassem sobre o problemão de arrumar a casa --isto é, reduzir o deficit externo, entre outras coisas-- sem fazer com que o PIB do povo ande muito aquém do PIB dos economistas.
27 de maio de 2014
Samuel Pessoa, Folha de SP
Na terça feira da semana passada, ampla reportagem do jornal "Valor" noticiou o entusiasmo do titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e meu colega da FGV, Marcelo Neri, com os avanços sociais na última década e, em particular, no quadriênio de Dilma Rousseff.
Adicionalmente o ministro apontou a defasagem que há entre a evolução do produto per capita do país, também chamado de "PIB dos economistas", e a renda pessoal medida pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, o "PIB do povo".
Entre 2003 e 2012, ano da Pnad mais recente disponível, o PIB per capita cresceu em termos reais 28%, enquanto a renda mediana domiciliar per capita teve aumento de 78%! Houve defasagem na velocidade de crescimento dos PIBs "do povo" e "dos economistas" de 50 pontos percentuais.
Marcelo é reconhecido como um dos melhores microeconomistas da área de economia do trabalho no Brasil. Microeconomistas trabalham em geral com bases de dados muito amplas e estudam em detalhe a natureza de cada indivíduo. Diz-se que olham as árvores sem se preocupar com a floresta. Já os macroeconomistas estudam a floresta sem se preocupar com cada uma de suas árvores.
O risco da análise macroeconômica é não notar pequenas dinâmicas que aos poucos ganham corpo e acabam por ter impactos agregados importantes.
Já os microeconomistas correm o risco de não reconhecer que a dinâmica da árvore pode depender de fatores agregados que estejam a atingir toda a floresta. Por exemplo, é possível que a árvore esteja crescendo mais rápido porque as condições climáticas alteraram-se transitoriamente, em favor do crescimento. Quando o clima retornar ao padrão usual, a bonança perderá fôlego.
Parece que esse longo período no qual o PIB do povo andou além do PIB dos economistas foi acompanhado da construção de desequilíbrios em outras variáveis macroeconômicas que colocam em xeque a manutenção do processo.
Entre 2003 e 2012, o deficit de transações correntes como proporção do PIB elevou-se em 3,2 pontos percentuais. Como mostrei na semana passada, nesse período os termos de troca, isto é, o preço da pauta exportadora em unidades da pauta importadora, cresceu mais de 20%. Conta simples sugere que, se não tivesse havido a alteração dos preços em nosso favor, a variação do deficit de transações correntes entre 2003 e 2012 seria de mais de sete pontos percentuais do PIB, visto que nesse período a absorção (consumo e investimento dos setores público e privado) cresceu 60%, e o produto, 40%.
Ou seja, parece haver associação entre o fortíssimo crescimento do PIB do povo além do PIB dos economistas e a elevação do deficit externo, que saiu de um superavit de 1,76% do PIB em 2004 para um deficit hoje na casa de 4%.
Para verificar essa possível associação, tomei as Pnads de 1981 até 2012. Calculei a renda individual mediana de todos os trabalhos a preços de 2012. Essa será a minha medida do PIB do povo. Para o PIB dos economistas, considerei o PIB per capita a preços de 2012.
Para cada um dos anos, tomei a diferença entre as taxas de crescimento do PIB do povo e do PIB dos economistas entre 1981 e a referida data. Sempre que essa estatística for positiva, significa que, entre 1981 e a referida data, o PIB do povo andou além do PIB dos economistas. Quando for negativa, o PIB do povo andou aquém do PIB dos economistas. Chamei essa variável de defasagem entre os PIBs.
A má notícia é que a correlação entre o deficit de transações correntes e a defasagem entre os PIBs é de 75%. Desde a década de 1980, três quartos da variação do PIB do povo não explicada pela trajetória do PIB dos economistas está associada à piora das contas externas.
Enquanto os microeconomistas do governo municiam a presidente e seus auxiliares com informações positivas associadas ao bom desempenho do PIB do povo, seria oportuno que os macroeconomistas do governo se debruçassem sobre o problemão de arrumar a casa --isto é, reduzir o deficit externo, entre outras coisas-- sem fazer com que o PIB do povo ande muito aquém do PIB dos economistas.
27 de maio de 2014
Samuel Pessoa, Folha de SP
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