"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 6 de abril de 2014

EU SEI O QUE VOCÊ ESCREVEU ONTEM

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para o presidente Médici

"Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (...)", escreveu Mino Carta na revista "CartaCapital" do dia 2/4, para concluir: "Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma". Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da "imprensa" chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.

Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista "Veja" e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:

"Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (...). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção --e pensaram no futuro." Fofo?

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da "Veja" depois de completada a impressão.

Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga --algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.

"CartaCapital" de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual --surpresa!-- não há menção aos editoriais da "Veja" assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do "controle social da mídia", eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas ("O Globo"), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas ("Estadão"). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.

O artigo de Carta na "CartaCapital" é uma catilinária contra os "reacionários nativos" que, "instalados solidamente na casa-grande" e "com a colaboração dos editorialistas dos jornalões", perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.

Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa. 

 
05 de abril de 2014
Demétrio Magnoli, Folha de SP

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