Mulheres se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra
Que se abstenham os cientistas sociais que explicam, os caretas que julgam, os crentes que proíbem. Só os carnavalescos entendem o carnaval, ouvem seu silêncio estridente e conhecem as cinzas da quarta feira. É graça dada a eles a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, cola para sempre e resiste à banalidade dos dias. Os carnavalescos conhecem a divina liberdade de transformar-se no que bem lhes aprouver e desvendam o segredo das máscaras.
Crescemos neste país de loucos, passamos o ano chorando os tantos lutos e lutas que escurecem nossas vidas e, de repente, eis que se abre o pano, se acende uma cena luminosa, um demônio ancestral solto nas ruas. É carnaval.
Esse mundo de pernas pro ar diz muito sobre a vida. Sabe que ninguém é totalmente autêntico quando fala em primeira pessoa, mas quando escolhe uma máscara se revela. Sabe com Oscar Wilde que a escolha das máscaras é mais verdadeira do que as autobiografias. Com Fernando Pessoa que “cada um é muitos”. E com Chico que “seja você quem for, seja o que Deus quiser”. Vestir fantasias e máscaras é uma aventura mais arriscada do que qualquer second life virtual.
Os homens desde os velhos carnavais sempre gostaram de sair de mulher — “sair de” é expressão do carnavalês castiço — talvez porque vestir a pele e as formas das senhoras fosse uma transgressão absolvida pela impunidade desses quatro dias. Havia nas pernas cabeludas amassadas na meia arrastão e na boca pintada de batom muito mais desafio do que o exibicionismo de vir nu, sacudindo um corpo malhado no luxo dos carros alegóricos.
Hoje, no que o carnaval desnuda, são as mulheres que se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra, uma terceira, que a natureza não favoreceu, passada a limpo, exibe a fantasia de mulher bonita. Costumam vestir, ou melhor, despir essa fantasia de Eva as esquálidas ou as rechonchudas, todas fantasiadas da Globeleza que sonham ser. Toda Eva malha na academia, toma tarja preta para baixar a ansiedade e janta uma folha de alface. É a máscara mais usada no carnaval do Rio.
Há uma insuspeita sabedoria no carnaval, que ninguém percebe em meio ao burburinho das escolas que desfilam hipermodernas, dos blocos resistentes que, pra consolo da lua, entoam as saudades de um amor que se acabou. Atenção, pois, às máscaras: no ano em que Dilma foi eleita sua máscara foi a mais vendida. No ano passado sofreu a concorrência de Joaquim Barbosa. Ao que dizem, este ano voltará a ser a mais procurada. Surgirão máscaras novas? O itinerário das máscaras contribui para entender em que passo está dançando o Brasil.
Na história milenar dessas caixas de ressonância com que o teatro grego ampliava a voz dos atores, que a Commedia dell’Arte incorporou como caricatura de cada um, que o nosso carnaval adotou para multiplicar as identidades individuais, as máscaras conheceram recentemente um triste capítulo que perverte seu sentido, invertendo-o. As máscaras do Anonymous, que há tempos vêm assombrando as ruas do mundo, dizem o contrário: não somos ninguém, somos legião, somos todos um só, o vingador.
A identidade individual, que o espírito das máscaras recria de maneira original na fantasia de cada um, aqui faz o caminho inverso: anula-se, dissolve-se em uma sombria identidade coletiva, um rosto único — e não existe máscara mais perigosa do que a que se quer única — que representaria todos unidos por um mesmo desejo de vingança. Um bloco de encapuzados desfila produzindo uma espécie de anticarnaval. Armados de paus e pedras, com o passo e gestos de primatas, são poucos e trazem uma mensagem de ódio que é o contrário mesmo da alegria.
No baile de máscaras que o Brasil sempre foi, convidou-se agora mais esse cordão do bota pra quebrar, dissonante e estrangeiro em uma cultura que até então não temia os mascarados porque os associava à alegria. Indomável alegria que os brasileiros nunca perderam apesar de todas as privações que corroem seu dia a dia e das injustiças infames com que convivem. E continuam a desfilar sua ainda irrealizada vocação para a felicidade no irreverente Cordão do Bola Preta, ou da Preta, em blocos populares que, Brasil afora, arrastam multidões. Bons carnavalescos preferem a alegria ao ódio.
Manda o código de honra dos bailes de máscaras que elas sejam retiradas à meia-noite. Passado o carnaval viveremos esse momento que, em todos os bailes, é o das surpresas. Quando todas as máscaras caírem, terá chegado a hora da verdade.
Que se abstenham os cientistas sociais que explicam, os caretas que julgam, os crentes que proíbem. Só os carnavalescos entendem o carnaval, ouvem seu silêncio estridente e conhecem as cinzas da quarta feira. É graça dada a eles a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, cola para sempre e resiste à banalidade dos dias. Os carnavalescos conhecem a divina liberdade de transformar-se no que bem lhes aprouver e desvendam o segredo das máscaras.
Crescemos neste país de loucos, passamos o ano chorando os tantos lutos e lutas que escurecem nossas vidas e, de repente, eis que se abre o pano, se acende uma cena luminosa, um demônio ancestral solto nas ruas. É carnaval.
Esse mundo de pernas pro ar diz muito sobre a vida. Sabe que ninguém é totalmente autêntico quando fala em primeira pessoa, mas quando escolhe uma máscara se revela. Sabe com Oscar Wilde que a escolha das máscaras é mais verdadeira do que as autobiografias. Com Fernando Pessoa que “cada um é muitos”. E com Chico que “seja você quem for, seja o que Deus quiser”. Vestir fantasias e máscaras é uma aventura mais arriscada do que qualquer second life virtual.
Os homens desde os velhos carnavais sempre gostaram de sair de mulher — “sair de” é expressão do carnavalês castiço — talvez porque vestir a pele e as formas das senhoras fosse uma transgressão absolvida pela impunidade desses quatro dias. Havia nas pernas cabeludas amassadas na meia arrastão e na boca pintada de batom muito mais desafio do que o exibicionismo de vir nu, sacudindo um corpo malhado no luxo dos carros alegóricos.
Hoje, no que o carnaval desnuda, são as mulheres que se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra, uma terceira, que a natureza não favoreceu, passada a limpo, exibe a fantasia de mulher bonita. Costumam vestir, ou melhor, despir essa fantasia de Eva as esquálidas ou as rechonchudas, todas fantasiadas da Globeleza que sonham ser. Toda Eva malha na academia, toma tarja preta para baixar a ansiedade e janta uma folha de alface. É a máscara mais usada no carnaval do Rio.
Há uma insuspeita sabedoria no carnaval, que ninguém percebe em meio ao burburinho das escolas que desfilam hipermodernas, dos blocos resistentes que, pra consolo da lua, entoam as saudades de um amor que se acabou. Atenção, pois, às máscaras: no ano em que Dilma foi eleita sua máscara foi a mais vendida. No ano passado sofreu a concorrência de Joaquim Barbosa. Ao que dizem, este ano voltará a ser a mais procurada. Surgirão máscaras novas? O itinerário das máscaras contribui para entender em que passo está dançando o Brasil.
Na história milenar dessas caixas de ressonância com que o teatro grego ampliava a voz dos atores, que a Commedia dell’Arte incorporou como caricatura de cada um, que o nosso carnaval adotou para multiplicar as identidades individuais, as máscaras conheceram recentemente um triste capítulo que perverte seu sentido, invertendo-o. As máscaras do Anonymous, que há tempos vêm assombrando as ruas do mundo, dizem o contrário: não somos ninguém, somos legião, somos todos um só, o vingador.
A identidade individual, que o espírito das máscaras recria de maneira original na fantasia de cada um, aqui faz o caminho inverso: anula-se, dissolve-se em uma sombria identidade coletiva, um rosto único — e não existe máscara mais perigosa do que a que se quer única — que representaria todos unidos por um mesmo desejo de vingança. Um bloco de encapuzados desfila produzindo uma espécie de anticarnaval. Armados de paus e pedras, com o passo e gestos de primatas, são poucos e trazem uma mensagem de ódio que é o contrário mesmo da alegria.
No baile de máscaras que o Brasil sempre foi, convidou-se agora mais esse cordão do bota pra quebrar, dissonante e estrangeiro em uma cultura que até então não temia os mascarados porque os associava à alegria. Indomável alegria que os brasileiros nunca perderam apesar de todas as privações que corroem seu dia a dia e das injustiças infames com que convivem. E continuam a desfilar sua ainda irrealizada vocação para a felicidade no irreverente Cordão do Bola Preta, ou da Preta, em blocos populares que, Brasil afora, arrastam multidões. Bons carnavalescos preferem a alegria ao ódio.
Manda o código de honra dos bailes de máscaras que elas sejam retiradas à meia-noite. Passado o carnaval viveremos esse momento que, em todos os bailes, é o das surpresas. Quando todas as máscaras caírem, terá chegado a hora da verdade.
01 de março de 2014
Rosiska Darcy de Oliveira
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