"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

PERGUNTA INCONTORNÁVEL

             
          Artigos - Movimento Revolucionário 
Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga.

Fora de alguns círculos discretos de neo-estalinistas, muita gente de esquerda reconhece hoje que o comunismo soviético foi uma tirania genocida e uma economia tão louca e ineficiente que acabou por se auto-eletrocutar.

O problema é que, ao persistir na esquerda, essa turma nos deixa sem uma resposta razoável para a seguinte e incontornável pergunta: Se o comunismo foi tão ruim, por que deveríamos admitir que o monopólio do bem e da virtude reside, hoje, naqueles que o apoiaram e não naqueles que o combateram?

Por que os herdeiros ideológicos que só renegaram o comunismo quando ele já estava morto e não havia mais meio de salvá-lo são pessoas mais decentes do que aqueles que o enfrentaram de peito aberto, arriscando a vida e a honra, quando ele era vivo e todo-poderoso? Por que chamar de heróis os que fomentaram o crime e de vilões os que tentaram detê-lo?

Será porque Hitler foi anticomunista? Mas Hitler também foi antitabagista, e ninguém sai por aí fumando só para ostentar antinazismo. Hitler foi vegetariano fanático, meio veganista -- mas vegetarianos e veganistas pululam na esquerda muito mais do que na direita, sem que ninguém os olhe com desconfiança. Hitler foi feroz inimigo da liberdade de mercado (v. http://mises.org/freemarket_detail.aspx?control=507), e nenhum socialista se vexa, por isso, de atacar a liberdade de mercado. Sobretudo, é claro, Hitler odiava os judeus, e nem por isso deixa de ser elegante, na esquerda, aplaudir os terroristas que os matam.

Não. Aqui como em praticamente tudo o mais, a reductio ad hitlerum, ou Lei de Godwin (v. http://en.wikipedia.org/wiki/Reductio_ad_Hitlerum), é uma fraude, não um argumento.
A solução do enigma está em outro lugar. Para enxergá-la é preciso estar ciente de três fatos. A descrição que aqui forneço deles é demasiado compacta, mas corresponde estritamente à realidade e pode ser comprovada por amostragem mais que abundante: 

1) É só nos dicionários que o comunismo é o nome de um sistema econômico definido, bem delimitado, inconfundível com o capitalismo, com a economia fascista, com a socialdemocracia etc. Na realidade da vida, os governos comunistas tentaram todos os arranjos e misturas, pela simples razão de que o comunismo dos dicionários -- a completa estatização dos meios de produção e subseqüente desaparição do Estado por efeito paradoxal da onipresença -- é uma impossibilidade absoluta.

2) Se não tem a unidade de um sistema econômico definido, o comunismo tem, em contrapartida, a de um movimento: é uma rede mundial de organizações de variados tipos (por exemplo, partidos legais e grupos terroristas) em permanente intercomunicação, onde tanto o conflito quanto a solidariedade concorrem dialeticamente para o crescimento e avanço do conjunto na sua luta pelo poder.

3) Em razão dos dois fatos anteriores, a variedade de sentidos da palavra “comunismo” já se incorporou há tempos no discurso comunista, servindo igualmente bem para desnortear o adversário e fortalecer a unidade do movimento por trás de divergências de superfície. Um governo dominado pelos comunistas pode, por exemplo, ser admitido como “comunista” perante a platéia interna, ao mesmo tempo que, quando se fala ao público geral, se jura que ele não é comunista de maneira alguma (por exemplo, porque favorece o livre mercado como fez Lênin com sua Nova Política Econômica em 1921).
Mutatis mutandis, essa flexibilidade semântica resolve o problema de como o movimento comunista presente e atuante deve falar dos governos comunistas extintos ou reconhecidamente fracassados. 

Conforme a platéia a que esteja se dirigindo, ele tanto pode denominá-los francamente “comunistas”, para dar a entender que ele próprio não o é de maneira alguma, quanto pode jurar que eles nunca foram comunistas, salvando assim o ideal comunista abstrato de toda responsabilidade pelos crimes e pecados do comunismo histórico: o primeiro desses modos de dizer é usado para o público externo que se deseja tranqüilizar anestesicamente, o segundo para uma platéia mais próxima de militantes que se deseja encorajar ou de simpatizantes que se espera recrutar.

Desses três fenômenos a solução do problema com que iniciei este artigo brota espontaneamente: quando se condena o velho comunismo, mas exaltando os que o defenderam e denegrindo os que o combateram, de um só golpe a coesão, o revigoramento e o prestígio do movimento são assegurados, junto com a necessária camuflagem protetora, pelo artifício de rejeitar suas partes mortas e dar um novo nome às suas partes vivas.

Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga, mas que, aos olhos do estudioso – seja ele comunista ou anticomunista – são de uma simplicidade quase pueril e às vezes de um automatismo deprimente.
***
O assassinato de reputações começou nas altas esferas federais, mas agora baixou para o humilde recinto do jornalismo. A página do Facebook, “Ruth Sheherazade – a irmãzinha boa da Raquel” foi criada especialmente para sujar a imagem da apresentadora de TV, jogando, de raspão, uns respingos fecais na minha pessoa.
A técnica é a mesma dos famosos dossiês forjados contra inimigos do governo: fuçar a biografia da vítima em busca de detalhes inócuos aos quais se possa dar ares de grandes crimes e escândalos mediante uma linguagem artificiosa, fingidamente denuncista. A coisa é um trabalho de publicitários profissionais, restando averiguar quem é o cliente.
 
Publicado no Diário do Comércio com o título 'Difícil resposta'.

21 de fevereiro de 2014
Olavo de Carvalho

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