Este artigo desenvolve pontos que abordei no Seminário Internacional “O Sistema da Dívida na Conjuntura Nacional Internacional, realizado em Brasília, de 11 a 13.11.2013.
Esse evento focou questões fundamentais, como as absurdas taxas de juros que a União impõe a Estados e Municípios como credora deles, exações semelhantes às que ela paga ao sistema financeiro, liderado pela oligarquia financeira anglo-americana.
Também revelou provas existentes no Brasil e em auditorias levadas a efeito no Equador, na Argentina e na Islândia, reveladoras de que o grosso das dívidas originais não está documentado, e de que elas se multiplicaram através da capitalização de juros, taxas e comissões injustificados.
Não obstante, até hoje, o Congresso Nacional não cumpriu a determinação do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de 1988: efetuar a auditoria da dívida pública.
Apresentei no telão documentos do Arquivo da Constituinte que comprovam ter sido introduzido, por meio de fraude, no art. 166, § 3º, inciso II, da Constituição de 1988, o dispositivo que privilegia as despesas de juros e amortizações da dívida no Orçamento da União.
Dito dispositivo não foi jamais discutido nos trabalhos da Constituinte, mas. Entrou, de contrabando, depois de o texto constitucional ter sido aprovado, sem ele, pelo Plenário, no 1º Turno. Isso permitiu que as despesas com o serviço da dívida somassem – de 1988 ao presente - a colossal quantia de R$ 10 trilhões em preços atualizados.
Essa causa da ruína da União, Estados e municípios resulta, por sua vez, de duas outras fontes de sugação dos recursos do País: 1) a entrega do mercado brasileiro às transnacionais; 2) a dependência financeira e tecnológica nos investimentos na infraestrutura e nas indústrias básicas.
Essas duas fontes primordiais – começaram a implantar-se com o golpe de Estado de agosto de 1954, regido pelos serviços secretos anglo-americanos. Elas causam os déficits nas transações correntes com o exterior e acarretam a desindustrialização e o empobrecimento do País, juntamente com o serviço da dívida pública delas derivado.
A entrega do mercado às transnacionais causou danos irreversíveis ao País, e o teria feito mesmo que tivesse havido contrapartidas. Mas foi ainda pior: o governo, além do mercado, outorgou-lhes subsídios e vantagens de tal monta, que os prejuízos foram ainda mais profundos e avassaladores.
As benesses ao capital estrangeiro deram-se a partir da Instrução 113 da SUMOC (janeiro de 1955), que autorizou a CACEX (Carteira de Comércio Exterior) a emitir licenças de importação para equipamentos usados, sem cobertura cambial, permitindo, também, que o valor a eles atribuído pelas transnacionais fosse registrado como investimento estrangeiro em moeda.
Isso implicou suprimir a promissora indústria brasileira, que progredira desde o início do século XX, porquanto deu às empresas estrangeiras vantagem competitiva insuperável, proporcionando-lhes produzir no Brasil com custo zero de capital e de tecnologia.
De fato, as transnacionais puderam trazer máquinas e equipamentos usados, amortizados com as vendas nos países de origem e em outros mercados de grandes dimensões, enquanto as indústrias nacionais teriam de pagar pela importação de bens de capital e por tecnologia, ou investir por longos anos para produzir seus próprios bens de capital.
Além de doar o mercado brasileiro às transnacionais, através da licença para trazer seus bens de capital usados, de valor real zero, e contabilizá-lo por centenas de milhões dólares - base para transferir capital e lucros para o exterior -, o governo militar-udenista (1954-55) agraciou as transnacionais com a diferença entre a taxa de câmbio livre e a taxa preferencial.
A livre era mais que o dobro da preferencial. 1) as transnacionais declaravam o valor que quisessem, em moeda estrangeira, dos bens de capital importados; 2) convertiam-no à taxa livre; 3) ao transferir capital, “despesas” e lucros para o exterior, a conversão era à taxa preferencial.
Esse triplo favorecimento e mais os ganhos comerciais das transnacionais com suas importações, mediante sobrepreços – também altíssimos após o início da produção local - permitiu às transnacionais transferir fabulosos ganhos para suas matrizes no exterior.
Absurdamente, o Brasil entregou o que não deveria entregar por preço algum, e, além disso, em vez de cobrar, pagou para entregar.
JK foi entreguista tão radical, que não só manteve os indecentes favorecimentos ao capital estrangeiro, mas reforçou-os a ponto de ser aberta linha de crédito oficial para financiar as montadoras estrangeiras. Esse benefício foi negado à empresa brasileira Romi, de Santa Bárbara do Oeste (SP), que produziu 3.000 unidades da Romisetta, automóvel de um só banco, de 1956 a 1959.
Além disso, JK criou grupos executivos setoriais, como o GEIA, da indústria automobilística, para facilitar os procedimentos de entrada em funcionamento das montadoras estrangeiras e baixou a lei 3.244, de 14.08.1957, e o Decreto 42.820, de 16.12.1957, proporcionando mais vantagens cambiais aos “investidores” estrangeiros.
Não admira que, ao final do quinquênio de JK, o Brasil sofresse sua primeira crise de contas externas desde o início dos anos 30. Vargas havia, em 1943, reduzido a dívida externa do País a quase nada.
As transferências das transnacionais são o principal fator dos elevados déficits nas transações correntes com o exterior (US$ 80 bilhões nos últimos doze meses), que colocam o Brasil no limiar de mais uma crise.
21. Sobre os escandalosos sobrepreços, escreveu o senador Vasconcelos Torres (1920/1982), p. 94 do livro “Automóveis de Ouro para um Povo Descalço” (1977):
“No exercício de 1962 foi registrado, no balanço consolidado das onze empresas produtoras de veículos automóveis e caminhões, lucro de 65% em relação ao capital social, constituído por máquinas usadas, e aumentado posteriormente, com incorporações de reservas e reavaliação dos ativos.”
Na. p. 95 desse livro, há tabela referente aos balanços de 1963, comparativa de preços de venda da fábrica à distribuidora com os preços de venda do distribuidor ao público, para quatro montadoras, entre elas a Volkswagen: “o preço nas distribuidoras era mais de três vezes o preço na fábrica”, e os donos desta eram os mesmos daquelas ou tinham participação naquelas.
Desde o final dos anos 60, as transnacionais foram cumuladas por Delfim Neto com colossais subsídios à exportação, como isenções de IPI e ICM, nas importações de seus bens de capital e insumos, e créditos fiscais. Daí ao final dos anos 70, a dívida externa do País teve o crescimento mais rápido de toda sua história.
No livro “Globalização versus Desenvolvimento”, elenco quinze mecanismos através dos quais as transnacionais transferem recursos para suas matrizes, desde superfaturamento de importações e subfaturamento de exportações aos pagamentos à matriz por “serviços” superfaturados e fictícios, afora a remessa oficial de lucros.
A entrega do mercado às transnacionais é a principal, mas não a única fonte das transferências de recursos, dos déficits de conta corrente com o exterior e, por conseguinte, da dívida externa, a qual deu origem à hoje enorme dívida interna.
Esses déficits e dívidas derivam também da realização, sob dependência tecnológica dosinvestimentos públicos na infra-estrutura e indústrias básicas, como a siderurgia, em pacotes fechados, caixas pretas, usinas clés-en-main ou turnkey.
Em lugar de proporcionar espaço a pequenas e médias empresas de capital nacional, com capacidade de evolução tecnológica (engenharia e bens de capital), os governos pós-1954 privilegiaram grandes projetos, reservando assim o mercado para carteis transnacionais.
Ademais, esses governos subordinaram sua política financeira aos bancos privados - pois o Tesouro não emite a moeda nem comanda o crédito através de bancos públicos. Assim, o subdesenvolvimento tecnológico foi agravado, devido à carência financeira, decorrente da própria política, que levou a buscar financiamento externo, liderado pelos bancos internacionais multilaterais (Banco Mundial e BID).
Confiada a essas instituições - dominadas pelas potências imperiais - a direção das concorrências para as obras públicas, foram favorecidos os carteis transnacionais produtores dos equipamentos e demais bens de capital. Além disso, participavam do financiamento os bancos oficiais de exportação daquelas potências, bem como seus bancos comerciais privados.
Assim, ao contrário dos países que progrediram, a política econômica do Brasil não deu chances às empresas nacionais de desenvolverem tecnologia e de ganhar dimensão.
Nos países onde houve desenvolvimento real, as compras governamentais foram fundamentais para o surgimento de empresas de capital nacional dotadas de tecnologias competitivas.
Isso ocorreu no Brasil graças à Petrobrás, mas está decaindo com a quebra do monopólio estatal do petróleo. Houve também nas telecomunicações e no setor elétrico, mas acabou com as privatizações. Funcionou também em indústrias ligadas à área militar, a qual foi, depois, enfraquecida por cortes no investimento público e pela desnacionalização.
O financiamento dos bancos públicos fortaleceu o capital nacional, naqueles aqueles países, inclusive os de desenvolvimento recente, como Coreia do Sul, Taiwan e China. Enquanto isso, no Brasil, o BNDES e os demais bancos estatais, há muito, deixaram de priorizar as empresas nacionais e oferecem empréstimos favorecidos a empresas transnacionais.
As instituições brasileiras desmoronaram a partir da crise da dívida de 1982, e esta decorreu: 1) da entrega do mercado às transnacionais, que se assenhorearam da produção industrial no País, inclusive bens de capital; 2) de os investimentos públicos terem utilizado equipamento importado e/ou produzido localmente por empresas estrangeiras, em grau muito maior que o devido à incapacidade de oferta adequada por empresas de capital nacional.
A dependência tecnológica foi agravada em função da entrega do mercado às transnacionais. Além disso: a) as empresas nacionais foram ter-se asfixiadas pelas políticas restritivas aos investimentos públicos e ao crédito - tornado proibitivo sob o governo de 1964 a 1966; b) o governo recorreu, em grau crescente, aos empréstimos e financiamentos estrangeiros, em face do crescimento da própria dívida. Esse recurso era, de início, desnecessário, pois o Estado poderia emitir moeda e crédito.
Apesar de os choques do petróleo terem contribuído para a explosão da dívida externa nos anos 70 – pois o Brasil era importador líquido - isso não foi fator decisivo. Não o foi tampouco a brutal elevação dos juros nos EUA em agosto de 1979, quando, de resto, a situação das contas externas brasileiras já se mostrava insustentável.
Outros países com ainda maior coeficiente de importação de petróleo - como Alemanha, Itália, França, Japão, Coreia - não caíram, em 1982, na mesma situação de Brasil, Argentina e México, caracterizados pelo modelo dependente e pela ocupação de setores estratégicos de suas economias pelos investimentos estrangeiros diretos.
Desde 1982, o governo pôs-se de joelhos diante dos bancos comerciais e dos governos das potências hegemônicas, a pretexto da crise da dívida externa, oficializando a submissão ao FMI e Banco Mundial e aos planos dos banqueiros (Baker e Brady - 1983-1987).
Assim, a desnacionalização e a primitivização tecnológica, consequências das políticas adotadas desde o final de 1954 tornaram-se ainda mais intensas. A condição colonial ficou evidente na Constituição de 1988, não só através do dispositivo fraudulentamente inserido no art. 166 (Vide § 5 acima) para privilegiar as despesas com o serviço da dívida, mas também de outras normas, como o art. 164.
Esse determina que a competência da União para emitir moeda seja exercida exclusivamente pelo Banco Central (BACEN), e o proíbe de conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira. Dispõe, ademais, que os saldos de caixa da União serão depositados no BACEN.
Ora, o Tesouro, que deveria ser o emissor da moeda e financiar parte dos investimentos públicos desse modo, não pode fazê-lo. Portanto, a Constituição força o Tesouro a endividar-se, emitindo títulos públicos. Com isso assegura lucros absurdos aos bancos privados, os quais recebem recursos do BACEN, a baixo custo, e os aplicam em títulos do Tesouro, que pagam juros elevadíssimos.
Esses juros são fixados pelo COPOM (Comitê de Política Monetária), controlado pelo BACEN, um feudo dos bancos privados. Essa é mais uma fonte de enriquecimento sem causa, como a decorrente do privilégio de criar dinheiro do nada, fazendo empréstimos em múltiplo dos depósitos.
Banco é uma concessão que o Estado só deveria dar à mãe dele, a sociedade: é uma concessão que só tem sentido se for estatal e exercer suas funções em prol da sociedade. No Brasil esta não poderia estar sendo mais traída, pois aqui são praticadas taxas de juros altíssimas sem qualquer razão, afora a mistificação.
Chegou-se a taxas básicas para títulos públicos acima de 40%, inclusive após o Plano Real, falsamente apresentado como saneador da inflação. E, de resto, para reduzir a inflação faz mais sentido baixar que elevar as taxas de juros.
A taxa de 2% aa. capitalizada mensalmente por 30 anos não faz dobrar um saldo devedor. A de 15% faz que o saldo seja multiplicado por 66,3.
O Brasil já estava subjugado em 1988, e depois o opróbrio intensificou-se a cada eleição. Veio a liquidação de estatais estratégicas; a lei da desestatização; os planos “antiinflacionários”, repressores da economia produtiva; dezenas de emendas constitucionais contrárias ao País, como a que acabou com qualquer possibilidade de distinção entre empresa de capital nacional e empresa de capital estrangeiro.
Mais: as infinitamente danosas privatizações; abertura das importações, sem contrapartida; isenção de impostos e contribuições à exportação de produtos primários; adoção do estatuto da OMC e da lei de propriedade industrial, que afunda o País no apartheid tecnológico; lei 9.478/1997: entrega do petróleo às transnacionais; lei de “responsabilidade” fiscal: prioridade absoluta aos gastos com a dívida pública; demissão do Estado com a criação das agências e as concessões; parcerias público-privadas: o Estado dá dinheiro, financia e garante lucro sem risco aos concentradores privados; intensificação dos subsídios e privilégios aos “investimentos” diretos estrangeiros.
Em resumo, aumenta-se a dose das políticas de desnacionalização da economia, causadoras originárias da dívida pública. A desnacionalização gera mais dívida, e esta aprofunda o rombo.
Fixam-se taxas de juros altíssimas sobre o montante enorme dessa dívida. Desse modo, mesmo sugando os contribuintes, com tributos, o Estado não consegue receitas suficientes para pagar a conta dos juros.
Isso demonstra que essas taxas não têm outro sentido senão acarretar o crescimento sustentado da dívida, por meio da capitalização de juros. Desnecessário reiterar o quanto tais políticas são destrutivas.
Além de escorchada pela carga tributária, a sociedade o é adicionalmente pelos preços dos produtos fornecidos por oligopólios e carteis transnacionais.
Ela sofre, pois, de múltiplos ataques que corroem a renda disponível dos cidadãos: 1) os preços abusivos dos produtos que se usa ou consome; 2) impostos e contribuições fiscais acima da capacidade contributiva; 3) crescente insuficiência dos investimentos públicos, decorrente de quase metade das despesas serem torradas com o improdutivo serviço da dívida, bem como de desonerações fiscais e subsídios em favor do sistema financeiro e dos concentradores em geral.
Desgastam ainda mais a renda social e a qualidade de vida das pessoas: 1) a lastimável condição das infraestruturas, especialmente a de transportes e a de energia; 2) a baixa e decadente qualidade da educação e da saúde, inclusive saneamento e prevenção; 3) a carência de empregos, inclusive dos de produtividade elevada e bem remunerados.
16 de dezembro de 2013
Adriano Benayon é doutor em economia e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.
Adriano Benayon é doutor em economia e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.
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