Até, acho, o 1968 francês, os que tinham, deixem-me ver como chamar, “sede de justiça” e se mostravam dispostos a punir os maus para recompensar os bons encontravam no marxismo um abrigo seguro.
Mesmo, ou muito especialmente, para os que entendiam não mais do que os rudimentos da teoria, aquilo emprestava um grande conforto.
Afinal, os “camaradas” forneciam uma explicação convincente, embora fosse falsa, para o mundo como ele é e apontavam um futuro redentor.
Melhor ainda para as mentes aflitas: diziam como chegar lá.
Um partido organizaria a classe operária, que representava as forças que conduziriam a amanhãs sorridentes. Nesse desenho, a função do intelectual de classe média era ajudar a construir esse ente.
Isso acabou. Ninguém mais acredita na classe que traz em si a forma do futuro. A esquerda se fragmentou, entregando-se a subjetivismos extremados, a particularismos, a uma curiosa mistura de individualismo exacerbado com fúria coletivista.
Como isso se revela? Ora, grupos de pressão têm a certeza de que suas demandas precisam se realizar para que a humanidade, então, dê um salto de qualidade. No fim das contas, quase sempre, seus motivos são egoísticos ou corporativistas, mas elas mesmas precisam acreditar que falam em nome da sociedade.
Na área de comentários, várias pessoas que tentaram emplacar aqui a defesa da invasão do Instituto Royal falavam coisas como “o povo está despertando”…
O povo? Cadê o povo? Sem vacinas e antibióticos, os pobres morrerão primeiro, não é? Porque lhes faltam condições adequadas para uma vida saudável. Os micro-organismos sabem disso…
O mundo é hoje, na expressão de uma amiga, “um supermercado de causas”.
Pegue aquela que o faz feliz! Não se trata mais de organizar uma classe para a revolução ou, vá lá, o assalto ao poder. Não! O que se quer é impor como norma o que é valor para um grupo.
À sua maneira, já escrevi aqui, o socialismo se pautava por aspirações universais — ainda que seus líderes fossem mentirosos patológicos e que a teoria fosse uma farsa.
O espantoso é que os grupelhos de agora são mais obscurantistas. Vejam o caso dos beagles. Usar animais em pesquisas não é matéria de escolha. E uma imposição da nossa civilização — da qual, diga-se, muitos podem querer apear. O que não é possível é exigir que outros façam o mesmo. Mas quê…
As minorias, na era da afirmação das identidades e dos particularismos, entendem que a reação contrária a suas pretensões não é um ponto de vista diverso, mas legítimo.
Ao contrário: ou se está com eles ou se está contra o bem.
Cotó
Um dos textos deste blog de que mais gosto é sobre um cachorro.. Foi escrito no dia 31 de outubro de 2011. Alguns se perguntarão: “Como pôde o Reinaldo escrever isso e agora defender que animais sejam usados em pesquisas?”.
Terei de responder assim: o que eu gostava em Cotó — e ainda hoje me vem um nó na garganta quando penso nele e quando leio meu próprio texto — é que ele me humanizava.
Um jeito bom de amar os bichos é permitir que eles nos façam melhores na relação com outros humanos. Segue o meu texto.
Um vira-lata
Um dia ele apareceu na vilinha, não se sabe de onde. Já chegou adulto, meio labrador, meio lata, com o rabo cortado. Alguns o chamaram, então, “Cotó”. Outros o tinham por “Martim”, jamais consegui saber em razão de que marca. Estava por ali, entre as casas, havia bem uns 12 anos. Os “cachorristas”, dadas algumas características, lhe atribuíam entre 15 e 18 de vida. Contrariava a máxima de que cachorro de muitos donos morre de fome. Ele não! Estava sempre bonito, garboso, saudável.
Livre, sua simpatia era objeto de disputa. Cotó era personagem das nossas férias, dos nossos fins de semana, de muitos dos nossos momentos de alegria. No último sábado, saiu para não voltar. Não dava mais pra ele. Os rins tinham parado de funcionar. Já não conseguia mais se alimentar. Só lhe restava a dor. Dor silenciosa, respiração ofegante, cansaço extremo.
Foi levado ao veterinário. Um primeiro remédio o fez dormir, e outro pôs o ponto final.
Os dias podiam ser instáveis; o céu, temperamental; o sol, incerto; a temperatura, variável. Mas Cotó restituía todas as nossas esperanças de dias melhores. Era o portador da memória daquele lugar. Mais do que qualquer um de nós, sabia que um vento podia enegrecer o céu ou, então, abri-lo num azul largo e ancestral.
É provável que voltasse sempre em busca de comida — não aceitava nada que não fosse carne ou derivado, o luxento! —, e a gente confundisse aquilo com afeto. Mas quem se importa? Quem é tão vaidoso a ponto de inquirir os reais motivos de um cachorro?
Às vezes ele interrompia a minha leitura ou outra coisa qualquer que estivesse fazendo. Postava-se à minha frente. Encarávamo-nos, então, com camaradagem. “E aí, meu? O que é que manda?” Ele se aboletava por ali, descansava o focinho entre as patas, fechava os olhos devagar e parecia me dizer: “Isso vai se repetir para sempre. A vida pode ser assim, mansa…” E, por alguns segundos, minutos talvez, eu conseguia não pensar em nada, não querer nada, não me importar com nada. Dois camaradas satisfeitos, silenciosos, ocos de anseios, como a paisagem, como a seqüência dos dias, como o marulho mais ao fundo.
Cotó tinha a generosidade das coisas certas. Enquanto estava por ali, era como se nunca tivéssemos sido mais jovens, nunca tivéssemos sido mais saudáveis, nunca tivéssemos sido mais ágeis, nunca tivéssemos sido mais otimistas, nunca tivéssemos sido mais viçosos. Naquela pequena vila, ele nos dava a ilusão da eternidade e alimentava as nossas esperanças.
Morreu Cotó, e o tempo nos invadiu. Terei de aprender a amar outra narrativa na mesma paisagem, da qual ele não é personagem. Eu devo ter imaginado — acho que sim, não estou bem certo — que me viriam os netos e que ele continuaria por ali a atestar que nem tudo nos foge pelos vãos dos dedos, aos poucos, sem nem mesmo um suspiro audível.
Isso não é política, como vêem. É que Cotó tomou seu rumo. Lá se foi ele, sem consultar ninguém, como sempre, dono do seu nariz.
20 de outubro de 2013
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