Há uma tênue linha vermelha que liga as recentes sanções do Congresso dos EUA contra o Irã e agora a Federação Russa, com a decisão de Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo de sancionar o Qatar. Essa linha vermelha nada tem a ver com luta contra o terrorismo e tudo a ver com quem controlará a maior reserva de gás natural do planeta e com quem dominará o mercado mundial daquele gás.
Por mais ou menos todo o século passado, desde 1914, o mundo esteve permanentemente em guerra pelo controle do petróleo. Gradualmente, com a adoção de políticas de energia limpa na União Europeia e mais especialmente depois que a China concordou com reduzir significativamente as emissões de CO2 reduzindo a geração de carvão, ato em si não científico, mas político, além dos avanços nas tecnologias de transporte de gás natural, principalmente a liquefação (produzindo o Gás Natural Liquefeito), o gás natural finalmente se tornou mercadoria de mercado global, como o petróleo.
ERA DO GÁS – Com esse desenvolvimento, estamos hoje numa era não só de guerra pelo controle das maiores reservas de petróleo. Hoje vemos o alvorecer da era das guerras pelo gás natural. Senhoras e senhores, apertem os cintos.
Em termos de atores geopolíticos, nenhuma potência foi mais responsável por iniciar as recentes guerras não declaradas, pelo gás, que os Estados Unidos, que faz política em nome dos chamados interesses do estado profundo. Esse movimento começou mais marcadamente com o governo Obama e continua com furor no show Trump-Tillerson. A recente viagem de Donald Trump a Riad e Telavive para propagandear a ideia de uma “OTAN Árabe Sunita” para combater o “terrorismo”, que agora os EUA passaram a definir como “Irã”, inaugurou uma nova fase nas emergentes guerras globais dos EUA pelo gás.
RÚSSIA, IRÃ E QATAR – Com vistas a controlar o emergente mercado mundial de gás natural de “CO2 baixo”, Washington passou a atacar não só a Rússia – onde estão as maiores reservas de gás. Agora, Washington já está atacando Irã e Qatar.
Já escrevi sobre a reunião, dia 15/3/2009 entre o então emir do Qatar, xeique Hamad Bin Khalifa Al Thani, com o presidente Bashar al-Assad da Síria, naquele momento ainda considerado amigo confiável do emir. Quando o xeique Hamad propôs a Assad a construção de um gasoduto, do enorme campo de gás do Qatar no Golfo Persa, atravessando a província síria de Aleppo até a Turquia, para chegar ao grande mercado de gás da União Europeia, Assad não aceitou a proposta, e falou de suas já longas relações com a Rússia em questões de gás. Disse que não desejava interferir, com gás do Qatar, nas exportações russas de gás.
Aquele campo de gás no Golfo Persa, que os qataris chamam de North Dome e os iranianos chamam de South Pars, é considerado o maior campo contínuo de gás do planeta. Quis o destino que esse campo se espalhasse em águas territoriais dos dois países, do Qatar e do Irã.
OUTRO GASODUTO – Então, em julho de 2011, como se noticiou, com concordância de Moscou, os governos de Síria, Iraque e Irã assinaram acordo diferente para construir outro gasoduto, o “Gasoduto da Amizade”. Por esse acordo, se construiriam 1.500 quilômetros de gasoduto, para levar o gás intocado do vasto campo iraniano de South Pars até o emergente mercado de gás da União Europeia, via Iraque, Síria e até o Mediterrâneo, pelo Líbano. Claro que esse gasoduto está suspenso desde que OTAN e os reacionários estados wahhabistas do Golfo optaram por destruir a Síria, a partir de 2011.
Optaram por destruir Assad e o estado soberano da Síria servindo-se de várias entidades terroristas que agiriam como ‘procuradores’ locais, sob falsa bandeira, a qual, em diferentes momentos teve diferentes nomes (Al-Qaeda no Iraque e Síria, depois Estado Islâmico no Iraque e Síria, depois simplesmente Estado Islâmico ou na sigla em árabe, Daech).
NOVA REALIDADE – Quanto à OTAN e aos estados árabes do Golfo, um gasoduto Irã-Iraque-Síria alteraria todo o mapa geopolítico de energia da Eurásia, e promoveria a influência política do Irã, contra a dominação dos sauditas wahhabistas.
Não surpreendentemente, quando o misterioso ISIS explodiu em cena em 2014, tratou logo de ocupar Aleppo, para onde estava planejado o gasoduto do Qatar para a Turquia. Coincidência? Pouco provável. Os dois trajetos cruzam aquela região: a rota Qatar-Síria-Turquia-UE (em azul) deve passar pela província de Aleppo; e o trajeto alternativo Irã-Iraque-Síria (em vermelho), pelo Líbano, até os mercados de gás na União Europeia.
2011 foi o ano em que o Qatar pôs-se a fazer jorrar $3 bilhões em sua guerra contra Assad, apoiado pela Arábia Saudita e outros estados árabes sunitas do Golfo e então também pela Turquia, que viu sumirem suas ambições geopolíticas europeias, como base asiática de gás.
ATAQUE A ASSAD – Logo no mês seguinte, depois de anunciado o acordo Irã-Síria para construção do “Gasoduto da Amizade”, em agosto de 2011, os EUA, no Conselho de Segurança da ONU ‘exigiram’ a derrubada de Assad. Forças Especiais dos EUA e da CIA começaram a dar treinamento, clandestinamente, a terroristas que viriam a constituir a tal “oposição síria” recrutados em todo o mundo sob influência dos wahhabistas, em bases secretas da OTAN na Turquia e na Jordânia.
Planejavam assim derrubar Assad e abrir as portas para um regime fantoche em Damasco, controlado pelos sauditas e favorável às suas ambições de construir gasoduto com o Qatar.
O que tudo isso tem a ver com a demonização do Irã, por Trump e pelo príncipe saudita Salman, para os quais o Irã seria “patrocinador número 1 do terrorismo” e o Qatar, apoiador de terroristas?
RELAÇÕES IRÃ/QATAR – Tudo se encaixa, quando se se sabe que o atual emir do Qatar, Xeique Tamim bin Hamad Al Thani, filho do Xeique Hamad, mais pragmático e apercebendo-se de que os sonhos de gasoduto que atravessasse Aleppo para a Turquia e dali à União Europeia já haviam virado fumaça no instante em que a Rússia entrou na guerra síria, começou silenciosamente a conversar com… Teerã.
Aconteceu na primavera passada: o Qatar iniciou conversações com Teerã em busca de um acordo sobre a exploração do campo de gás partilhado entre os dois países (South Pars-North Dome). O Qatar levantou a moratória que impedia a exploração do campo e deu início a discussões com o Irã sobre o desenvolvimento conjunto, acionado pelos dois países. Já se sabe que Qatar e Irã chegaram a um acordo para a construção conjunta de um gasoduto Qatar-Irã, do Irã até o Mediterrâneo ou até a Turquia, que também levará gás qatari até a Europa.
Em troca, Doha comprometeu-se a pôr fim ao apoio que dá ao terrorismo na Síria – golpe terrível contra os planos Trump-sauditas para balcanizar uma Síria hoje destruída e controlar os fluxos de gás da região.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Enviado por Sergio Caldieri, o artigo faz uma instigante análise da chamada guerra do gás, que a imprensa ocidental tenta esconder, estrategicamente. Como o texto é muito longo, publicaremos a segunda parte amanhã, sobre a demonização do Qatar, que sempre foi um dos maiores aliados dos EUA. (C.N.)
NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Enviado por Sergio Caldieri, o artigo faz uma instigante análise da chamada guerra do gás, que a imprensa ocidental tenta esconder, estrategicamente. Como o texto é muito longo, publicaremos a segunda parte amanhã, sobre a demonização do Qatar, que sempre foi um dos maiores aliados dos EUA. (C.N.)
01 de julho de 2017
F. William EngdahlNew Eastern Outlook
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