"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

ENTENDA COMO FOI DESMONTADA A LUTA PELA IMPLANTAÇÃO DE UM PROJETO BRASIL



Celso Furtado queria industrializar o país 


Na terceira parte da importantíssima entrevista de Zuenir Ventura com o editor e jornalista Cesar Benjamim, feita em 2007 para o livro “1968: o que fizeram de nós”, o futuro secretário de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro fala com pessimismo sobre o futuro do Brasil, devido ao desmonte dos projetos de desenvolvimento econômico e social que estavam se formando com base nas teses de grandes pensadores brasileiros, que têm sido abandonadas por sucessivos governos, que têm mantido o país subjugado a interesses internacionais.

ZUENIR VENTURA
– Como você está vendo o Brasil?
CESAR BENJAMIM – Com pessimismo. Tive uma forte ligação intelectual e afetiva com uma geração de grandes brasileiros, que vem dos anos 30, mais ou menos de Gilberto Freyre até Darcy Ribeiro. Entre eles, temos Sérgio Buarque, Caio Prado, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, que eu não conheci; Celso Furtado, Inácio Rangel e Darcy, que foram meus amigos. São uns 10 ou 12 intelectuais de grande estatura, trabalhando com diferentes perspectivas, freqüentemente divergindo entre si, mas com algo em comum: todos gostavam muito do Brasil e tentavam decifrar o nosso enigma. O horizonte de Furtado era transformar o Brasil em uma economia industrial desenvolvida. O do Caio Prado era completar a transição do Brasil-colônia ao Brasil-nação, processo que ele chamava de revolução brasileira. O do Gilberto Freyre era a potencialidade da cultura de síntese que se formara aqui. O do Darcy, o mais utópico de todos, era o do Brasil como um novo projeto civilizatório para substituir a civilização fria e triste dos países desenvolvidos, que está chegando ao fim.

Era uma geração de otimistas, não?

Mas não era um otimismo bobo. Decorria de um enorme trabalho intelectual e de uma inteireza moral. Era um otimismo construído pelo esforço de decifrar o enigma brasileiro e sinalizar caminhos. Até os anos 20 acreditava-se que o Brasil não teria futuro. Havia uma série de argumentos para mostrar isso. A construção da idéia de que somos um país viável, com futuro, é uma reviravolta importante em nossa história. Hoje, estamos perdendo o contato com essa herança. O que me manteve nessa longa militância, dos meus longínquos 13 anos até os meus 53 atuais, foi a crença de que o Brasil vai dar certo. O Darcy dizia: “Quando o Brasil der certo, vai dar muito certo. Isso aqui vai ser a nova Roma.” Exageros à parte, ele tinha certa razão, porque basta conseguirmos meia dúzia de coisas mais ou menos fáceis e triviais para garantir dignidade a todos e, a partir daí, construir um projeto civilizatório novo. Temos sol, alegria, música, sensualidade, sincretismo, coisas que os países lá de cima não têm. O Darcy inverteu todos os argumentos que eram jogados contra nós: “Vocês são mestiços, tropicais, resultado da reunião de gente desgarrada do mundo inteiro. Isso aí não pode dar certo.” Ele respondia: “Isso é que é bom, isso é que vai dar certo!” Eu acho estimulante esse ponto de vista. Mas ele nos incita a buscar caminhos próprios.

Mas pelo jeito, você acha que o Brasil está longe de dar certo, não?

A atual crise brasileira é muito grave. E, lamentavelmente, o sistema político que substituiu o regime militar falhou, pois não é capaz de gestar alternativas nacionais consistentes. É comandado, de um lado, por forças supranacionais, que controlam a formulação e a execução da política econômica; de outro, por forças subnacionais, que formam bancadas no Congresso Nacional – a bancada do agronegócio, da construção civil, das escolas privadas – e recebem pedaços do Estado em concessão. Fazer política, no Brasil, é gerenciar esse arranjo. Não há nenhuma instância pensando a dimensão nacional e o longo prazo. Não ouvimos falar mais na esperança-Brasil, mas sim no custo-Brasil. Estamos saindo da história. Isso me dói.

Mas e o Bolsa Família e o PAC?

Ô, Zuenir! O Bolsa Família é uma migalha: transfere 0,3% do PIB. Dá 60 reais a cada família, em média. Isso representa 15 reais por mês por pessoa, 50 centavos por dia, um pãozinho! Se o nosso horizonte de expectativas passou a ser esse, se consideramos isso uma grande conquista, então nos tornamos um povo de quinta categoria. O sistema distributivo relevante no Brasil é a Previdência Social, nascida na Constituição de 88, que transfere 8,2% do PIB na forma de direitos, não de favores. Ela está sendo desmontada, gradativamente substituída por esse programa baratinho, que nega direitos e distribui favores, sob aplausos do Banco Mundial. Isso é uma merda. Você fala do PAC. Muitas críticas se podem fazer ao plano de metas do Juscelino ou ao II PND do Geisel, mas eles mudaram o Brasil. Traduziam um esforço intelectual sério, buscavam levar a economia brasileira a novos patamares. O PAC é intelectualmente indigente, é uma reunião de projetos que já estão aí rolando há anos. Juntaram os projetos numa apostila e chamaram de plano. Mas ele não tem visão de futuro, não propõe nenhuma mutação, não tem qualidade. Serve para o Lula viajar, inaugurando insignificâncias e promessas. O aspecto mais relevante, no Brasil contemporâneo, é a ascensão da mediocridade como valor. Não me refiro apenas ao governo, mas à sociedade. Pensamos pequeno, fazemos tudo malfeito e compensamos isso com doses cavalares de marketing. Nem sempre foi assim. No início da década de 1950, o Brasil contratou uma equipe de geólogos, chefiada por um norte-americano, para descobrir petróleo aqui. Eles escreveram um parecer, dizendo que não tínhamos petróleo. O país ficou indignado. Getúlio respondeu, criando a Petrobrás. Hoje sabemos que o laudo não era uma sacanagem, como na época se pensou, pois o Brasil tem petróleo no mar. O laudo estava certo, para os padrões técnicos da época. Mesmo assim, nós reagimos com base na nossa auto-estima, em uma visão de futuro, na crença de que éramos capazes de fazer, e acertamos na mosca. Achamos petróleo inverossímil, a dois mil metros abaixo do nível do mar. O país criou a Petrobrás em 53, quando não tinha técnica, não tinha quadros, era uma economia fraquíssima. Mas ousava. Eu poderia dar muitos exemplos assim. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial houve a expectativa de um Plano Marshall para a América Latina, que não veio. Sabe o que o Brasil fez? Criou o BNDES! Havia uma idéia de Brasil que nos permitia reagir ativamente aos desafios vindos do sistema internacional. Nosso lugar natural é muito periférico, Zuenir. Sempre que deixamos o sistema-mundo definir o nosso lugar, fomos para o fim da fila. Só evitamos isso, no século XX, com um grande esforço endógeno. O que perdemos nos últimos vinte anos foi justamente a capacidade de sustentar esse esforço, até mesmo de concebê-lo ou simplesmente imaginá- lo. Estamos indo para o nosso lugar natural.

O que seria hoje uma visão de longo prazo?

Deixe-me dar um exemplo. Estamos vivendo o fim do ciclo do petróleo, que no século XX se associou às técnicas metal-mecânicas. Há uma nova família de técnicas que será decisiva no século XXI: as biotecnologias. A grande matéria-prima das biotecnologias é a diversidade genética, e o Brasil dispõe de 60% da diversidade genética do mundo. Não precisamos procurá-la sob a terra ou o mar. Ela está, basicamente, na Amazônia, expondo-se de modo exuberante. Hoje, porém, não somos capazes de fazer, em relação às biotecnologias, o que o Getúlio fez em relação ao petróleo. Por que a Petrobrás é poderosa? Porque reúne um núcleo de mais ou menos sete mil brasileiros de alto nível técnico – especialistas em robótica, em eletrônica, em química, em geologia, em todas as engenharias – organizados numa estrutura que tem uma sinergia de saberes. O Brasil precisaria criar hoje uma “Petrobrás” da biotecnologia, para, daqui a dez ou quinze anos, ter sete mil zoólogos, geneticistas, meteorologistas, biólogos, bioquímicos trabalhando juntos, tendo em vista assumirmos a vanguarda em um setor novo, de ponta. Mas o sistema político brasileiro sequer percebe que esse tipo de questão existe. Nos limitamos a medir, a cada ano, quanto destruímos da floresta para extrair madeira e plantar soja ou pastagem, atividades que são do período Neolítico. É desesperador. Eu poderia te dar inúmeros exemplos do que seria um projeto nacional para o século XXI, mas me sinto falando sozinho. Os partidos estão preocupados em costurar alianças para as eleições municipais. O horizonte deles termina aí.

Você acha que os governos de FH e Lula levaram valores de 68 ao poder?
O Fernando Henrique está muito longe de ter a estatura intelectual que lhe dão. Quando se tornou presidente, fui reler seus textos, como um dever de ofício. São uma fraseologia que não diz nada, um sociologuês que não leva a lugar nenhum. Quanto ao Lula, ele se destacou como sindicalista no melhor momento para se fazer política sindical: uma ditadura fraca, caminhando para o fim, uma economia crescendo em altas taxas, com pleno emprego, salário muito achatado e com as multinacionais prontas para dar aumento salarial. As filiais brasileiras estavam assumindo papéis importantes nas estratégias internacionais dessas empresas, e o trabalho no Brasil era baratíssimo. As multinacionais do ABC paulista tinham muita folga para negociar. O Lula teve méritos, senão não teria aproveitado esse bom momento. Mas também deu a sorte de pegar uma conjuntura sindical extremamente favorável. Quando ele surgiu no cenário nacional, encontrou uma oposição crescente, porém ainda dispersa, que precisava de um pólo de aglutinação. Dentro dessa oposição havia setores marxistas que sonhavam com a revolução operária. O Lula foi a chegada do Messias. Era o que a esquerda esperava: a idéia de um operário metalúrgico liderando uma revolução socialista se encaixava direitinho na doutrina.

Sem falar nos intelectuais, não é?

A junção de pessoas e movimentos, que estavam relativamente dispersos, gerou o PT e criou um impulso que durou até, pelo menos, 89. Um partido jovem, militante, aglutinando católicos, marxistas, sindicalistas. Foi um sonho que eu sonhei. Hoje eu vejo que foi um grande erro.

Você acha? Por quê?

O PT nasceu querendo reinventar a história, dizendo que ela começava com ele. O que acontecera para trás não tinha valor. Renegou a mais brilhante geração de intelectuais brasileiros e não compreendeu o movimento endógeno do Brasil. Tudo era impuro e ele era puro. Como não foi capaz de construir uma doutrina em bases sólidas, acabou facilmente cooptado pelo que há de pior. Não se constituiu nem mesmo como um partido reformista sério, o que já estaria de bom tamanho. Num partido arrogante e frágil, sem história, Lula e Zé Dirceu encontraram um campo fértil para implantar a estratégia desagregadora que conceberam.


23 de dezembro de 2016
Mário Assis Causanilhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário