Foi bom parar de falar na crise e na política.
Não quero nem pensar na próxima segunda-feira, essa espécie de quarta-feira amplificada que nos aguarda ali na esquina, sem Olimpíada, sem uma festa emendando na outra, sem todas as línguas do mundo se misturando no calçadão e no Boulevard; não quero nem pensar na cidade sem Guarda Nacional, ou nos estádios vazios; não quero nem pensar na conta.
Fui contra a realização da Olimpíada no Rio, assim como fui contra a Copa do Mundo: acho que o país tinha, e continua tendo, outras prioridades.
Não me conformo com o desperdício dos estádios construídos para a Copa nos lugares mais inviáveis, e me revoltam as muitas demolições e reconstruções do Maracanã, em particular, assim como a arrogância da Fifa e do COI, em geral, exigindo equipamentos insustentáveis de primeiro mundo num país com tantas dificuldades.
A lista de absurdos é imensa, e algo me diz que ainda vamos ter muitas surpresas desagradáveis ao longo do tempo à medida que formos contabilizando os prejuízos.
Por outro lado, não posso negar que foi bom viver essa pausa na enxurrada de más notícias dos últimos tempos. Foi bom parar de falar na crise e na política, dois motivos de permanente depressão, e usar um pouco de indignação para defender o Biscoito Globo.
Foi bom ver as redes sociais cheias de especialistas em esportes aos quais nunca prestamos atenção, e ver o Rio transformado em centro do mundo; apesar de todas as reportagens negativas, valeu ver a nossa cidade sendo filmada com amor e, eventualmente, sendo descrita com entusiasmo.
O Rio não é só beleza, mas também não é só violência; agradeço aos colegas de todos os países que se deram ao trabalho de tentar explicar a nossa complexidade aos seus leitores sem cair nos velhos chavões.
Foi bom — é sempre bom — ver como os outros nos veem. Ao contrário do que imaginam as pessoas que não convivem com estrangeiros, têm horror a estrangeiros e acham que qualquer cortesia feita a um estrangeiro é um golpe no amor próprio da Pátria, descobrir o olhar do outro é sempre interessante, ainda que às vezes nos cause desconforto.
Tenho uma secreta inveja de cidades como Veneza ou Nova York, que têm vastas bibliografias em qualquer língua conhecida, e são cenário de tantos filmes e romances diferentes.
Gosto de comparar versões e experiências, e adoro saber como tanta coisa que me parece familiar e trivial é vista por gente para quem tudo é novidade.
Não sei se o Rio já foi uma cidade mais turística do que é hoje, se o Brasil já foi mais educado e gentil, mas foi triste ver a repercussão do post de uma universitária que, apesar de falar inglês, se vangloriava de ter negado informações a um estrangeiro: “Gringo tá no Rio e eu que tenho que falar inglês?”.
Para muita gente imbuída de uma noção perversa de patriotismo, a moça tomou a decisão certa. Como assim, dar informação a uma pessoa que, visitando o Brasil, não se deu ao trabalho de aprender português?! Coisa tão fácil, tão simples...
Quero ver como essa turma vai se virar na próxima Olimpíada, em Tóquio.
Por falar em patriotismo — segundo o dr. Johnson, “o último refúgio dos canalhas” —, a medalha da vergonha vai, sem dúvida, para o judoca egípcio que se recusou a apertar a mão do rival israelense.
Ela pode ser compartilhada com todos que acharam a atitude louvável.
O Comitê Olímpico do Egito fez o que se esperava e desligou o infame El Shehaby da delegação. Parabéns para o comitê. E parabéns para a nossa torcida, que o cobriu de vaias.
Essa foi a única vez, aliás, que concordei com as vaias. Na maioria dos casos me senti profundamente envergonhada: nenhum atleta que esteja competindo de forma limpa e digna, dando o melhor de si, merece vaia.
Torcer pelos brasileiros é uma coisa, vaiar as demais equipes e demais atletas é o suprassumo da baixaria.
Não entendi os comentaristas que tentaram relativizar o péssimo comportamento das nossas arquibancadas. Não há “alegria”, “espontaneidade” ou “autenticidade” que justifique isso.
A medalha da crueldade vai para o cavaleiro brasileiro Stephan Barcha, desclassificado na disputa do salto por abusar das esporas e ferir seu parceiro Landpeter do Feroleto. Ele tem muito a aprender com Adelinde Cornelissen, da Holanda, que desistiu da competição para poupar o cavalo Parzival, que havia estado doente. Pode começar a aprendizagem pela leitura do post que ela escreveu no Facebook:
“Desisti, para protegê-lo... Meu camarada, meu amigo, o cavalo que sempre fez tudo por mim na sua vida não merece isso... De modo que saudei (a plateia) e me retirei da arena”.
A ferida de Landpeter foi considerada “uma fatalidade” pela equipe. Questiono esse tipo de “fatalidade” na barriga de um animal que, para começo de conversa, nunca pediu para competir.
As casas dos vários países foram um dos pontos altos da Olimpíada. Queria que elas ficassem aqui para sempre, com a sua música, os seus sabores, a sua troca de culturas e o seu jeitinho de Feira da Providência.
Levo um saldo pessoal muito positivo da Rio-2016: conheci Buzz Aldrin, o astronauta, um dos meus ídolos da vida toda, vi o primeiro jogo da nossa seleção feminina contra a Suécia (aquele, o bom!) e tive o privilégio de ver Simone Biles ganhar uma medalha de ouro.
Nunca pensei que tudo isso pudesse acontecer num espaço tão curto de tempo.
18 de agosto de 2016
Cora Ronai, O Globo
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