“A primeira vez que vi a luz foi num botequim, tomando um cafezinho com o chefe teórico de minha base no Partido Comunista, um excelente stalinista com um nariz inchado em ‘couve-flor’. Ele me disse a frase decisiva: ‘O comunista não morre. Só quem morre é o indivíduo iludido. O comunista se sabe um ser social. Ele faz parte de uma coisa maior, logo, comunista não morre’.
E eu, emocionado, sonhei com a vida eterna. Vi a luz. A partir daí, eu era parte de um processo histórico inelutável, muito mais importante que meus anseios burgueses.
Mas, confesso que, para atingir a verdade ideológica, percorri um labirinto de dúvidas. Desviei-me da pequena burguesia, evitei as teses reacionárias dos socialdemocratas.
A fé entrou em mim como uma água santa. Um batismo. Contra todos os obstáculos, chegaríamos ao futuro. Mesmo os erros nos levariam a um acerto final, como ensina a dialética materialista.
Daí para frente vivi com fé e força. Minha vida seria salvar o Brasil. Quando conquistamos o poder com Lula eu pensei: vamos fazer agora o que não conseguimos em 63. Agora é o trem em direção ao fim da história, ao paraíso social.
No entanto, hoje exalo uma cava depressão, à beira do impeachment de nossa presidenta! Que horror esse golpe!... A direita neoliberal imperialista burguesa, a oligarquia alienada e aliada à mídia conservadora, conseguiram destruir nosso grande projeto histórico.
Não viemos para essa piadinha de ‘democracia representativa’, não; a gente tomou o poder para mudar o Estado.
Em 2010, o presidente seria o Dirceu, mas a direita conseguiu expulsar nosso guerreiro do povo. Que pena... Fomos tão sérios em nosso projeto, fizemos tudo certo, sempre seguimos a ‘linha justa,’ sempre soubemos usar os meios para nossos fins. Os inimigos dizem que os fins não justificam os meios, mas nós — vamos botar a bola no chão, amigo leitor —, nós somos pessoas especiais, superiores mesmo à estupidez geral das classes médias, essa gente horrenda, burra, que deveria ser apunhalada ou enterrada viva, como bem disseram dois professores de São Paulo e Rio. Fins justificam meios sim. Por exemplo, dizem que roubamos, mas nunca usamos essa palavra. Sim, ‘desapropriamos’ empresas burguesas para montar nosso pecúlio para o socialismo bolivariano.
Alguns neoliberais dirão: ‘E a Petrobras?’. Muito simples. A Petrobras é uma empresa do povo brasileiro, e seu capital pode ser usado para o bem do mesmo povo. Foi tudo dentro de um projeto progressista.
Por exemplo, qual o problema de comprar a refinaria de Pasadena, no Texas (apelidada de ‘lata velha’ rs, rs), por um preço 30 vezes maior do que valia? 800 milhões de dólares não foram desviados por acaso; nossa presidenta fez olhos de cabra cega para o memorando do Cerveró porque essa grana seria para vencermos a luta entre opressores e oprimidos. Só a luta de classes nos explica.
Agora, está na moda uma visão crítica do patrimonialismo brasileiro, invenção daqueles revisionistas Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Quiseram explicar o Brasil por complexidades sociais e psicológicas. Mas, onde está a opressão, a injustiça que tanto gostamos de lembrar e de sofrer? Eles já estão sendo denunciados por nossos intelectuais. Criticar a injustiça nos enobrece.
Vejam aquela festa de abertura da Olimpíada, por exemplo. Foi uma coisa sórdida embelezar nossa vida, sob aquela ladainha política de ‘país tropical’, abençoado por Deus.
O show uniu a favela e o asfalto, numa falsa conciliação multicultural, mas no fundo para silenciar nossas contradições e a violência dos conflitos. Dizem que foi belíssima a apresentação para 3 bilhões de pessoas no planeta, mas não me deixo enganar: a beleza pode ser reacionária. Foi um show de direita, para uma Olimpíada reacionária.
Não vi nenhum jogo, a não ser da Venezuela e Coreia do Norte, bastiões de defesa contra o imperialismo norte-americano, que será destruído. Os sinais estão no ar.
Acho até bom que o Trump seja eleito presidente dos Estados Unidos — aí... Fode tudo logo e arrasa aqueles gringos, responsáveis por nossa desgraça. O próprio Estado Islâmico é culpa dos americanos; são a consequência do imperialismo na Ásia.
Ouso dizer mesmo que todo o desmanche que aconteceu com o Brasil teve um lado, digamos, ‘progressista’. Desorganizou a oligarquia capitalista, uma coisa que é sempre boa. Temos de avacalhar o capitalismo, mesmo sem ter o que botar no lugar.
Fizemos muito pelo povo, mas agora fomos barrados pela direita mais sórdida: os fascistas que só pensam em equilibrar as contas do país. Mas, que contas? Estávamos no poder, e resolvemos distribuir grana para o povo porque o apoio popular era mais importante que uma contabilidade certinha de armazém. Chávez quebrou a Venezuela, mas, como um passarinho no ouvido do Maduro, detém o poder com ajuda de juízes e militares dominados.
Talvez nosso maior erro, como disse brilhantemente a direção do PT, foi não termos nos aproximado mais dos militares.
Fico olhando o povo. É minha única delícia ainda. Amo sua ignorância, sua simplicidade, sua obediência fácil. Sou um homem bom. E hoje minha consciência está tranquila. Sempre lutei pelo povo, mas sobretudo por minha própria boa consciência. A pobreza seria nossa bússola para salvar a sociedade. Um grande Estado regulando tudo e nosso povo pobre, mesmo analfabeto, mas todo arrumadinho, regido por um Comitê Central esclarecido.
Claro que minha vida pessoal melhorou com algumas sobras de campanha, caixas dois etc. Menti sobre isso sim; mas, que que tem mentir? São mentiras revolucionárias. Mas estou muito triste porque esse sonho ficou impossível. Eles, os neoliberais, os cães capitalistas desfizeram todas nossas grandes obras. A vida social hoje é um caos, sem a tranquilidade do ritmo socialista de viver. Chego a ter inveja da vida arrumadinha da Coreia do Norte. Não aceito a vida como ela é hoje no Ocidente. O presente não presta; só existe o futuro. O certo está no avesso de tudo. A vida é de direita.”
18 de agosto de 2016
Arnaldo Jabor, O Globo
E eu, emocionado, sonhei com a vida eterna. Vi a luz. A partir daí, eu era parte de um processo histórico inelutável, muito mais importante que meus anseios burgueses.
Mas, confesso que, para atingir a verdade ideológica, percorri um labirinto de dúvidas. Desviei-me da pequena burguesia, evitei as teses reacionárias dos socialdemocratas.
A fé entrou em mim como uma água santa. Um batismo. Contra todos os obstáculos, chegaríamos ao futuro. Mesmo os erros nos levariam a um acerto final, como ensina a dialética materialista.
Daí para frente vivi com fé e força. Minha vida seria salvar o Brasil. Quando conquistamos o poder com Lula eu pensei: vamos fazer agora o que não conseguimos em 63. Agora é o trem em direção ao fim da história, ao paraíso social.
No entanto, hoje exalo uma cava depressão, à beira do impeachment de nossa presidenta! Que horror esse golpe!... A direita neoliberal imperialista burguesa, a oligarquia alienada e aliada à mídia conservadora, conseguiram destruir nosso grande projeto histórico.
Não viemos para essa piadinha de ‘democracia representativa’, não; a gente tomou o poder para mudar o Estado.
Em 2010, o presidente seria o Dirceu, mas a direita conseguiu expulsar nosso guerreiro do povo. Que pena... Fomos tão sérios em nosso projeto, fizemos tudo certo, sempre seguimos a ‘linha justa,’ sempre soubemos usar os meios para nossos fins. Os inimigos dizem que os fins não justificam os meios, mas nós — vamos botar a bola no chão, amigo leitor —, nós somos pessoas especiais, superiores mesmo à estupidez geral das classes médias, essa gente horrenda, burra, que deveria ser apunhalada ou enterrada viva, como bem disseram dois professores de São Paulo e Rio. Fins justificam meios sim. Por exemplo, dizem que roubamos, mas nunca usamos essa palavra. Sim, ‘desapropriamos’ empresas burguesas para montar nosso pecúlio para o socialismo bolivariano.
Alguns neoliberais dirão: ‘E a Petrobras?’. Muito simples. A Petrobras é uma empresa do povo brasileiro, e seu capital pode ser usado para o bem do mesmo povo. Foi tudo dentro de um projeto progressista.
Por exemplo, qual o problema de comprar a refinaria de Pasadena, no Texas (apelidada de ‘lata velha’ rs, rs), por um preço 30 vezes maior do que valia? 800 milhões de dólares não foram desviados por acaso; nossa presidenta fez olhos de cabra cega para o memorando do Cerveró porque essa grana seria para vencermos a luta entre opressores e oprimidos. Só a luta de classes nos explica.
Agora, está na moda uma visão crítica do patrimonialismo brasileiro, invenção daqueles revisionistas Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Quiseram explicar o Brasil por complexidades sociais e psicológicas. Mas, onde está a opressão, a injustiça que tanto gostamos de lembrar e de sofrer? Eles já estão sendo denunciados por nossos intelectuais. Criticar a injustiça nos enobrece.
Vejam aquela festa de abertura da Olimpíada, por exemplo. Foi uma coisa sórdida embelezar nossa vida, sob aquela ladainha política de ‘país tropical’, abençoado por Deus.
O show uniu a favela e o asfalto, numa falsa conciliação multicultural, mas no fundo para silenciar nossas contradições e a violência dos conflitos. Dizem que foi belíssima a apresentação para 3 bilhões de pessoas no planeta, mas não me deixo enganar: a beleza pode ser reacionária. Foi um show de direita, para uma Olimpíada reacionária.
Não vi nenhum jogo, a não ser da Venezuela e Coreia do Norte, bastiões de defesa contra o imperialismo norte-americano, que será destruído. Os sinais estão no ar.
Acho até bom que o Trump seja eleito presidente dos Estados Unidos — aí... Fode tudo logo e arrasa aqueles gringos, responsáveis por nossa desgraça. O próprio Estado Islâmico é culpa dos americanos; são a consequência do imperialismo na Ásia.
Ouso dizer mesmo que todo o desmanche que aconteceu com o Brasil teve um lado, digamos, ‘progressista’. Desorganizou a oligarquia capitalista, uma coisa que é sempre boa. Temos de avacalhar o capitalismo, mesmo sem ter o que botar no lugar.
Fizemos muito pelo povo, mas agora fomos barrados pela direita mais sórdida: os fascistas que só pensam em equilibrar as contas do país. Mas, que contas? Estávamos no poder, e resolvemos distribuir grana para o povo porque o apoio popular era mais importante que uma contabilidade certinha de armazém. Chávez quebrou a Venezuela, mas, como um passarinho no ouvido do Maduro, detém o poder com ajuda de juízes e militares dominados.
Talvez nosso maior erro, como disse brilhantemente a direção do PT, foi não termos nos aproximado mais dos militares.
Fico olhando o povo. É minha única delícia ainda. Amo sua ignorância, sua simplicidade, sua obediência fácil. Sou um homem bom. E hoje minha consciência está tranquila. Sempre lutei pelo povo, mas sobretudo por minha própria boa consciência. A pobreza seria nossa bússola para salvar a sociedade. Um grande Estado regulando tudo e nosso povo pobre, mesmo analfabeto, mas todo arrumadinho, regido por um Comitê Central esclarecido.
Claro que minha vida pessoal melhorou com algumas sobras de campanha, caixas dois etc. Menti sobre isso sim; mas, que que tem mentir? São mentiras revolucionárias. Mas estou muito triste porque esse sonho ficou impossível. Eles, os neoliberais, os cães capitalistas desfizeram todas nossas grandes obras. A vida social hoje é um caos, sem a tranquilidade do ritmo socialista de viver. Chego a ter inveja da vida arrumadinha da Coreia do Norte. Não aceito a vida como ela é hoje no Ocidente. O presente não presta; só existe o futuro. O certo está no avesso de tudo. A vida é de direita.”
18 de agosto de 2016
Arnaldo Jabor, O Globo
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