Os Estados Unidos poderiam vender a estátua da Liberdade, que saúda os navegantes na chegada a Nova York? Nem por todo ouro do mundo. Como a águia romana por uma legião, ou a bandeira por um exército, o símbolo de soberania não se negocia. Existem sentimentos que deixam um objeto irrenunciável, cercado de afeto, de valores, de legados inestimáveis. Não é só de moeda que vive o homem.
Em Minas, enfrenta-se um impasse que atormenta o Estado em geral e o Vale do Aço em especial, povoado por mais de um milhão de pessoas que, neste momento, se encontram na iminência, exatamente dos valores irrenunciáveis, de cair na desgraça.
De um lado, os japoneses (Nippon Steel Corporation) e, do outro, os ítalo-argentinos (Techint-Ternium) tentam encontrar uma solução improvável de acordo. Mas como alhos e bugalhos não se misturam, acaba que o destino da Usiminas é o mais sombrio de sua longa história.
A maior siderúrgica do país está a poucas horas de se mergulhar na inadimplência e de se resvalar para uma recuperação judicial. Um desastre.
À BEIRA DO ABISMO
O valor econômico em jogo, os empregos de uma multidão e a arrecadação que gera ao Estado de Minas estão para cair num abismo do qual o retorno será muito penoso. Há cerca de quatro anos a Usiminas se encontrava num impasse, com custos de produção acima do que seria competitivo internacionalmente, sofrendo pelo desinteresse dos grupos Votorantim e Camargo Corrêa e desejosa de deixar para trás as ações da empresa, em que Nippon Steel tinha a fatia do leão.
O sócio japonês acabou por atrair o grupo ítalo-argentino da família Rocca, um colosso familiar que faz sucesso em três continentes, disposto a injetar sangue novo e levar adiante um choque de gestão que colocasse a Usiminas no mesmo patamar de competitividade de outras empresas dos Rocca.
Isso aconteceu a partir de 2012, contudo, questões menores e irrelevantes irritaram os japoneses. Casos poucos reais e fundamentalmente corretos na forma italiana de enxergar foram aproveitados como “casus bellis” para deflagrar a guerra que já se dava silenciosamente. A aeronáutica japonesa, como fez em Pearl Harbor, liquidou de surpresa os gringos, virou a mesa da Usiminas e colocou no lugar dos postos-chave outras figuras.
Os enxotados, entretanto, tinham arsenal para voltar ao ataque. Os balanços dos últimos meses levaram a empresa a um prejuízo de R$ 3,7 bilhões, à perda de caixa e a uma escalada do endividamento. Acionistas minoritários que apoiaram a manobra estão decepcionados. Eram felizes e não sabiam.
ORGULHOS FERIDOS
Agora, voltar a discutir com ex-aliados ou negociar uma trégua ficou difícil. A Usiminas é um mar revolto de orgulhos feridos e de provocações, mas ela nunca deixará de ser o primeiro empreendimento sério do Japão fora de seu território depois do término da Segunda Guerra Mundial.
O Japão demorou 12 anos para acreditar de novo em territórios fora das suas ilhas e fincou, em Ipatinga, um megaprojeto em sociedade com o governo brasileiro (que na Segunda Guerra ficou fora, numa posição distante do Japão, traumatizado por causa de Hiroshima e Nagasaki).
A Usiminas no Japão tem uma importância histórica, não está exatamente como uma estátua da Liberdade para os EUA, mas quase. Inegociável.
Ter chamado italianos para resolver problemas nipo-mineiros não se deu por convencimento filosófico, mas apenas porque precisava de uma gestão capacitada e de comprovado sucesso no mundo inteiro que pudesse renovar e até eliminar vícios de uma gestão estatal que tirou a competitividade dos complexos siderúrgicos implantados. A sensação é que os nipônicos atraíram os ítalo-argentinos para que sem vínculos afetivos colocassem a casa em ordem, com uma filosofia que não era aquela apregoada por eles.
MUDANÇAS INCÔMODAS
Se entre marido e mulher é arriscado pôr a colher, entre japoneses e mineiros politicamente comprometidos a chegada italiana gerou profundos incômodos e mudanças. Entretanto, a Usiminas tinha que encontrar um patamar de rentabilidade e passar de “estatal com vícios políticos” para uma empresa capacitada a enfrentar a avalanche de aço que a China passou a despejar no mercado mundial – subindo a sua produção, nos últimos 20 anos, de R$ 220 milhões para R$ 850 milhões de toneladas de aço. Quer dizer que com a metade do que se produz no mundo concentrado na China a siderurgia passou a viver outra realidade.
Diversidades religiosas, filosóficas e culturais entraram e não se amalgamaram em Ipatinga. Entrar nos detalhes não serve, e descobrir quem tem razão ainda menos. A realidade é que elementos sem periculosidade, como nitrato e glicerina, juntando-se podem explodir, e de explosivos a Usiminas está saturada.
Só que essa empresa, símbolo para uma parte, decepção para outra, representa para muita gente daqui o emprego, o desenvolvimento e o equilíbrio socioeconômico. Perder a Usiminas abriria uma cratera incalculável.
SEPARAR OS ATIVOS
Esse nó górdio, inextricável e cada dia mais sólido precisa ser cortado. Se, afinal, não existe a possibilidade de viver junto, ou de um comprar a parte do outro, seja por razões sentimentais e porque as ações não valem mais nada, o que resta é separar os ativos. Como num divórcio, dividir razoavelmente o patrimônio para que cada um viva feliz na sua autonomia.
A solução que o governo de Minas poderia dar ao impasse passa provavelmente em “recomendar” que os ativos de Minas (Ipatinga-Usiminas) e São Paulo (Cubatão-Cosipa) sirvam para uma separação consensual, exatamente na divisa dos dois Estados.
Ganharia Minas e ganharia São Paulo, cada grupo seguiria sua religião e autonomia. Isso serviria até para os acionistas minoritários que assistiram as suas ações evaporarem. Os japoneses, com sua filosofia de longo prazo, recapitalizariam e levariam a termo a salvação da Usiminas. Os ítalo-argentinos encontrariam como gastar suas energias e sua competência na recuperação da Cosipa.
Minas e seu povo, evidentemente, não podem pagar a conta da discórdia.
02 de março de 2016
Vittorio MedioliO Tempo
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