Diante do absurdo que significa o funcionamento de partidos revolucionários com programas internacionalistas, contrariando as leis brasileiras, fica a pergunta: o TSE serve somente para organizar eleições?
Parte I - O então Partido Comunista do Brasil foi tornado ilegal por decisão do Tribunal Superior Eleitoral em 7 de maio de 1947 através da Resolução 1341. Motivo: possuía dois estatutos e uma estrutura clandestina. 42 anos depois, em maio de 1985, esse mesmo Tribunal, cometendo uma ilegalidade aceitou registrar aquele partido que ele mesmo julgara ilegal e que ainda o era, pois a alteração introduzida na Constituição, tornando-o legal, não havia sido ainda publicada.
Como ocorreram os fatos, cronologicamente:
O Ministro da Justiça do governo Sarney, Fernando Lyra, assessorado pelo Consultor Jurídico do Ministério, Marcelo Cerqueira - então militante do PCB - autorizou que o Diário Oficial da União publicasse, em 8 de maio de 1985, os documentos (Manifesto, Programa e Estatutos) do PCB, passo necessário a fim de que o partido pudesse dar entrada, no Tribunal Superior Eleitoral, do pedido de registro, o que foi feito nesse mesmo dia.
Nesse mesmo dia 8 de maio, o Congresso Nacional havia aprovado, por consenso das lideranças, ou seja, sem qualquer votação, o que, à vista da Constituição, é manifestamente ilegal, uma Emenda Constitucional alterando diversos artigos da Constituição, dentre os quais o artigo 152, tornando livre a criação de partidos políticos, sua organização e funcionamento. O autor dessa Emenda foi o então deputado federal Roberto Freire, do PMDB, que integrava o Comitê Central do clandestino PCB.
Essa alteração na Constituição, "votada" em 8 de maio, só viria a ser publicada no Diário Oficial de 16 de maio, data em que, juridicamente, passou a vigorar. Ou seja, 8 dias depois de o Diário Oficial da União ter publicado os documentos do PCB, um partido clandestino, proibido de funcionar pela decisão de maio de 1947! E antes dessa publicação o TSE aceitou os documentos desse partido, até então clandestino. Daí uma pergunta: para que serve o Tribunal Superior Eleitoral, se ele próprio infringiu as leis do país?
No dia seguinte, 9 de maio, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma elucidativa matéria referente ao deputado Roberto Freire. Dizia: "Segundo o deputado, a publicação do Manifesto no Diário Oficial da União foi resultado de uma negociação com o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a quem está subordinado o Departamento de Imprensa Nacional, e com o próprio presidente Sarney". Ou seja: outra ilegalidade!
Sobre esse fato, inusitado e surpreendente, o Juiz-Auditor da Terceira Auditoria de São Paulo, ao determinar, em 30 de setembro de 1985, o arquivamento de um processo que havia indiciado, em dezembro de 1982, toda a cúpula do PCB pelo crime previsto no artigo 25 da Lei de Segurança Nacional ("fazer funcionar, de fato, partido político dissolvido por decisão judicial"), prolatou uma longa sentença da qual destacamos o trecho seguinte: "(...) Igualmente incrível é que a publicação do Programa, Manifesto e Estatutos do Partido Comunista Brasileiro, no Diário Oficial da União, ocorreu ANTES que houvesse qualquer legislação complementar permitindo que tal fato acontecesse, conquanto tais publicações foram feitas na seção I do Diário Oficial da União publicado em 8 de maio de 1985 (páginas 7032 a 7042), enquanto que a Emenda Constitucional nº 25 foi publicada no Diário Oficial da União na data de 16 de maio de 1985, portanto 8 dias depois, quando então os partidos ATÉ A DATA DESSA EMENDA, que tenham tido seus registros anteriores cancelados ou cassados, PODERÃO ORGANIZAR-SE, desde que atendidos os princípios estabelecidos no "caput" e itens do artigo 152 da Constituição Federal. Ora, o que foi feito antes é irregular, porquanto o articulado no artigo 6º da Emenda Constitucional nº 25 dá ênfase a que os partidos nas condições descritas SÓ PODERIAM REORGANIZAR-SE a partir de 16 de maio de 1985, e não antes (...)" (Ver o artigo A Ilegal Legalização do PCB em Maio de 1985).
Observe-se que o Juiz-Auditor classificou, com parcimônia, de "irregular" o processo que precedeu a legalização do PCB.
Parte II - Em 8 de novembro de 2003 militantes do Partido do Socialismo e da Liberdade (P-SOL), aprovaram, em Belo Horizonte, uma "Carta ao Povo Brasileiro". Segundo esse documento, "O atual Estado Democrático de Direito (que de democrático não tem nada) é a ordem do latifúndio, da propriedade capitalista, dos contratos com o FMI e o imperialismo".
O P-SOL não é um partido nacional, conforme explicitado no artigo publicado no Mídia sem Máscara em 12 de setembro de 2005. É um emaranhado de grupos e correntes trotskistas, que conformam uma extensão do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CI/QI), que tem sede em Paris.
Em dezembro de 2002, durante a VI Conferência Nacional do grupo Democracia Socialista (DS) - corrente trotskista que atua dentro do PT -, realizada em Florianópolis, com a presença de dirigentes da CI/QI, a senadora Heloisa Helena, então ainda militante da DS, pronunciou um discurso referindo-se a um dos dirigentes do trotskismo internacional, Livio Maitan, falecido dias antes. Disse ela: "Querido companheiro, querido camarada Livio, em nome do P-SOL, do Partido do Socialismo e da Liberdade, em nome da nossa corrente da liberdade vermelha, da corrente Democracia Socialista, fica aqui o nosso tributo. O companheiro Livio, o grande camarada Livio Maitan morre, mas permanece vivo em nossos corações e na luta incansável de todos os militantes da esquerda socialista no mundo".
Ainda em 2003, nos dias 21 a 23 de novembro, em São Paulo, a corrente Democracia Socialista realizou a sua VII Conferência Nacional. Comprovando o internacionalismo dessa corrente, esteve presente o francês Daniel Bensaid, da direção do CI/QI e do grupo trotskista francês Liga Comunista Revolucionária, corrente majoritária dentro do CI/QI.
Em junho de 2004, foi fundado em Brasília o P-SOL, por quatro parlamentares expulsos do PT e pelos dirigentes das correntes Movimento de Esquerda Socialista (MES) e Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), ambas também atuantes dentro do PT na condição de tendências, bem como Heloisa Helena e João Machado Borges Neto (que, ironicamente, é membro da Direção Nacional do PT), dirigentes da corrente Liberdade Vermelha, constituída dentro da Democracia Socialista. Ou seja, uma corrente dentro de outra corrente que, por sua vez, atua sob o guarda-chuva do PT...Um emaranhado!
Nesse mesmo ano de 2004, matéria publicada na revista trotskista "Marxismo Revolucionário Atual", editada em espanhol, assinala o seguinte, referindo-se ao P-SOL: "A nova corrente nasce sob os sinais do marxismo, do socialismo, da revolução, do internacionalismo, da independência de classe, da democracia, do feminismo e do combate a todas as opressões (...) Liberdade e Revolução pretende tomar o melhor dessas experiências para juntar as mulheres e os homens do tempo presente, ante o desafio de encontrar os novos caminhos que nos levarão às revoluções do Século XXI".
No ano seguinte, 2005, o P-SOL patrocinou e realizou, no Rio de Janeiro o I Seminário Internacional. Esse evento reuniu um amplo arco da esquerda revolucionária (expressão com a qual os trotskistas se referem a si próprios). Estiveram presentes representantes do Socialist Workers Party (SWP) da Inglaterra, Liga Comunista Revolucionária (LCR) da França, Internacionalist Socialist Organization (ISSO) dos EUA, Carre Rouge da França, Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores da França, Unión Nacional de los Trabajadores (UNT) da Venezuela, Movimiento Socialista de los Trabajadores (MST) da Argentina, Soberania Popular da Argentina, Pueblo Unido da Argentina, Movimiento Al Socialismo (MAS) da Argentina, Socialismo Revolucionário da Argentina, Unidade Obrera y Socialista (UnioS) do México, La Lucha Continua (LLC) do Peru e Izquierda Socialista (IS) do México. Todos esses partidos, grupos e organizações integram o Comitê Internacional/Quarta Internacional!
Ainda em 2005, na França, nos dias 23 a 28 de agosto, foi realizada a XIV edição da Universidade de Verão da Liga Comunista Revolucionária. Um documento divulgado pela LCR lamenta a ausência da senadora Heloisa Helena e assinala: "Isso, todavia, não impediu que a chamada `questão brasileira´ em um dos temas discutidos na reunião, pois (...) a luta da Quarta Internacional é inseparável da história do PT (...) o trotskismo acompanhou os primeiros passos do PT, surgido no início dos anos 80 das entranhas industriais de São Paulo".
Um segundo Seminário Internacional foi realizado pelo P-SOl, em Caracas, em janeiro de 2006, durante a realização do Fórum Social Mundial, com a presença da mesma fauna do socialismo revolucionário internacional.
Finalmente, leiam o artigo 21 do Programa do P-SOL, apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral, que resultou na sua legalização como partido político:
"A luta da classe trabalhadora é internacional (observação: frase de Marx no Manifesto do Partido Comunista). Em defesa da solidariedade e da coordenação das lutas latino-americanas. Defendemos a articulação política dos socialistas internacionalistas de todos os países, o apoio às lutas e a busca constante de uma coordenação das mesmas. Pela unidade dos trabalhadores e do povo da América Latina. Pela Federação das Repúblicas da América Latina! (...) Contra a vergonhosa intervenção do Brasil no Haiti (...) Consideramos decisiva a construção de uma frente de ação, política e social, que busque articular para a luta os movimentos e as forças sociais anti-imperialistas no nosso continente".
Ora, dirão todos: mas esse não é um partido nacional! Todavia, o Superior Tribunal Eleitoral julgou que é e o registrou! Por que não é um partido nacional, perguntarão alguns?
A resposta está nos seguintes artigos da Lei 9.096 de 19 de setembro de 1995, que dispõe sobre Partidos Políticos e Regulamenta os artigos 17 e 14 , parágrafo 3º, inciso V da Constituição Federal:
Artigo 5º - "A ação do partido tem caráter nacional e é exercida de acordo com o seu estatuto e programa, sem subordinação a entidades ou governos estrangeiros".
Parágrafo 1º do artigo 7º: "Só é admitido o registro do estatuto de partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove o apoiamento de eleitores correspondente a, pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de um décimo por cento do eleitorado que haja votado em cada um deles".
Ou seja, o Partido pelo Socialismo e pela Liberdade, cujo internacionalismo é notório, bem como notória é a sua dependência de um centro internacional com sede em Paris, é considerado pela Lei como nacional, pois, para obter registro, comprovou o apoiamento de eleitores nacionais. Uma piada!
Essa legislação ordinária invalida o espírito que deu origem à expressão caráter nacional (Item I do artigo 17 da Constituição Federal):
"É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I - caráter nacional;
II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes".
Não fosse isso, esta matéria comprovou, ademais, que o Partido do Socialismo e da Liberdade é subordinado a uma entidade estrangeira: o Comitê Internacional da Quarta Internacional, com sede na França.
Mas os absurdos não param aí. Outro grupo trotskista, seção nacional de uma internacional trotskista obteve registro junto ao TSE: o Partido da Causa Operária (PCO). O registro provisório foi concedido em 1995 e o definitivo em 1997.
Mas, o que é o Partido da Causa Operária?
É um agrupamento de trotskistas rompidos com outro grupo trotskista, a Organização Socialista Internacionalista, no final de 1978, uma ruptura que foi parte de um processo internacional. Naquele momento, o grupo assumiu a denominação de Tendência Trotskista do Brasil (TTB) e, em janeiro de 1980, num "Congresso de Fundação", a TTB assumiu a denominação de Organização Quarta Internacional (OQI).
Em 1980 a OQI ingressou no PT, onde passou a atuar como tendência "e se transformou na fração trotskista e revolucionária daquele partido, conhecida pelo nome de seu jornal, Causa Operária".
Em 1991, os militantes da Causa Operária, ou seja, da OQI, foram expulsos do PT em todos os Estados. Em 1995 foi obtido o registro provisório do Partido da Causa Operária e o definitivo em 1997, como acima foi exposto.
Para a obtenção do registro, o PCO apresentou os três documentos exigidos: Manifesto, Anteprojeto de Estatutos e Programa. Desses documentos extraímos as seguintes pérolas, aceitas pelo Tribunal Superior Eleitoral:
Do Manifesto: "(...) O PCO (...) proclama a inevitabilidade da abolição da propriedade privada capitalista (...) e chama todos os explorados a assumirem a estratégia e o programa da transformação socialista da sociedade;
Do Anteprojeto de Estatutos: "As bases programáticas do PCO - sobre as quais se estrutura o programa e a organização partidária - são o Manifesto Comunista escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, o conjunto de Resoluções dos quatro primeiros congressos da III Internacional e o Programa de Transição da Quarta Internacional, escrito por Leon Trotski";
Do Programa: "Serviço militar de três meses para todos. Salário para os soldados equivalente ao civil. Vigência de todos os direitos sindicais e políticos para os soldados e suboficiais. Substituição do sistema de Exército permanente por um sistema de participação universal da população. Dissolução dos aparatos repressivos. Redução do orçamento militar e aumento do orçamento para a saúde e educação;
Em nível internacional, o PCO é a seção nacional da Refundação da Quarta Internacional (ex-Comitê de Ligação pela Reconstrução da Quarta Internacional), que agrupa seções nacionais de doze países, sendo o Partido Obrero argentino, dirigido por "Jorge Altamira", codinome de José Saul Wermus, irmão de Felipe Belisário Wermus ("Luiz Favre", que foi marido de Marta Suplicy), o partido majoritário da Refundação.
Todos os dados constantes deste texto são públicos, seja pela imprensa, seja pela Internet. Muito embora, ao que tudo indica, sejam desconhecidos pelos diligentes juízes do TSE e do imenso aparato burocratizado do Tribunal, que os assessora.
Muitos, assim como eu, perguntarão: Para que serve o TSE, meu Deus? Para organizar eleições de dois em dois anos? Para implantar urnas eletrônicas sujeitas a trambiques de toda ordem, como a imprensa vem noticiando?
27 de outubro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário