"Definitivamente, os modelos de militância que marcaram os setores mais radicais da esquerda por cerca de 70 anos se esgotaram. Figuras como“o bolchevique, o agitador anarquista, o guerrilheiro urbano, o soldado-partido”, não mais existirão, pois as regras que regulavam o funcionamento dos coletivos que constituíam essas figuras jurássicas foram derrubadas. Uma dessas regras, a fundamental, foi aquela que a Rainha Vermelha, do livro “Alice no País das Maravilhas”, bradava: 'Primeiro a sentença; depois o veredicto!!"
Após o desmoronamento do socialismo real muitas foram as autocríticas de militantes que perderam o rumo. Reconheça-se, no entanto, que alguns persistem. Uns sugerem um retorno a Marx. Outros afirmam que a culpa foi de Stalin, que distorceu Marx e Lênin.
E
ntre estes últimos, há também aqueles que, embora sem deixar de acreditar na utopia, fizeram uma autocrítica, como o kamarada que escreveu o texto abaixo, culpando não a doutrina científica, mas aqueles que não souberam colocá-la em prática:
“A derrota da Frente Sandinista, em 1990, nas eleições presidenciais na Nicarágua demonstra que, sem paz e pão, não se pode esperar que o povo reconheça na esquerda a sua vanguarda.
De fato, é a esquerda que, histórica e teoricamente, se tem autodenominado vanguarda, termo pomposo que dá a quem o pronuncia a ilusão de comando. Não fossem tão pretensiosos, talvez preferissem se considerar a retaguarda.
Ora, como poderia o povo rejeitar, pelo voto livre e secreto, a sua vanguarda, e escolher a candidata do imperialismo, se a teoria determina que os trabalhadores no poder não podem cometer suicídio de classe? Pode-se resolver o enigma admitindo-se que a teoria está certa, o povo é que anda errado ...
A Frente Sandinista, uma vez no poder, acreditou que a superestrutura condicionaria a infraestrutura. Quem tinha em mãos a máquina estatal e os meios de comunicação já não precisava preocupar-se tanto com o funcionamento dos CDS (Comitês de Defesa Sandinistas) e das organizações de massa.
O antigo militante, companheiro de lutas e mutirões, virou dirigente e, logo, ocupante de um cargo de destaque na estrutura de poder. Enquanto os jovens partiam para a frente de combate e as mulheres perdiam o alento diante da acelerada desvalorização do córdoba e do crescente aumento dos preços, alguns dirigentes viviam em condições privilegiadas, distantes do trabalho de base e do jeito como a população suportava no dia-a-dia os efeitos da crise econômica e da agressão imperialista.
Se a Nicarágua sandinista fracassou por culpa do imperialismo, o mesmo não se pode dizer a respeito do socialismo europeu. Não houve agressão militar e nem o espectro da fome rondou os lares. Foi a própria população que, saturada da burocracia e fascinada pelo consumismo neoliberal, deu um basta naquele modelo político imposto em decorrência da partilha da Europa, ocorrida no fim da Segunda Guerra. Onde imperava a ditadura do partido, o povo exigiu democracia; onde se impunha severo controle ideológico, sob aparato policial, o povo pediu liberdade.
O socialismo adotado pelos países vizinhos à União Soviética era tributário do modelo russo que, por sua vez, nunca rompeu inteiramente com a herança autocrática do czarismo imperial. Havia algo de fundamentalismo religioso naquelas concepções pretensamente científicas, indiscutíveis, que defendiam a irreversibilidade do regime socialista ao capitalismo e a marcha inexorável dos trabalhadores rumo ao comunismo.
Na prática, como sempre, a teoria era outra. Predominava a ditadura do partido, a falta de mecanismos de participação popular nas instâncias do Poder, a redução dos sindicatos e dos movimentos populares a meras correias-de-transmissão das orientações partidárias. A síndrome do inimigo reforçava a censura sobre a produção intelectual, inibia o debate crítico e encarava as discordâncias pela ótica policialesca da dissidência, do revisionismo e da traição.
Tal ortodoxia – muitas vezes mera ortofonia – aprofundou o fosso entre Estado e Nação, partido e massa, princípios ideológicos e prática comportamental, minando as bases de um projeto que se propunha fazer novos a sociedade e as pessoas.
A desintegração da União Soviética deixou a nu o socialismo cubano. Em 30 anos, a Revolução não logrou criar uma infraestrutura mínima de auto-sustentação. A dependência entranhou-se nas próprias estruturas do Estado. E, a exemplo do que ocorreu na Nicarágua, as fronteiras entre o Estado e o partido perderam nitidez.
Por seu verticalismo, o Estado deixou de contar com canais institucionais capazes de levar até ele as demandas críticas e as contribuições populares. E as dificuldades advindas do duplo bloqueio, a contrapartida de um trabalho ideológico de base provocam agora, em setores da população, uma espécie de estresse cívico, como se as energias de resistência ameaçassem esgotar-se diante da falta de qualquer perspectiva de melhoria salarial a médio prazo.
Não é nada fácil resistir quando se defronta com um apartheid turístico, pelo qual os estrangeiros têm acesso aos mais sofisticados bens de consumo e aos melhores espaços de lazer da ilha, enquanto a população carece de sabão e enfrenta filas intermináveis para comprar um simples sorvete.
Só haverá socialismo se houver socialistas revolucionários. E estes só terão êxito se fortalecerem a organização popular”.
A matéria acima não é um relatório da CIA e também não é um texto escrito por exilados cubanos em Miami. Foi escrita por Frei Betto. Está nas páginas 409 a 413 do seu livro “O Paraíso Perdido”, editora Geração Editorial, 1993.
21 de agosto de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador
Carlos I. S. Azambuja é Historiador
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