Overdose de pesporrência e autoritarismo. Olho para as venezuelas, para as argentinas e até para as cubas da vida e constato que, felizmente, a História anda bem mais rápido neste mundo sem fronteiras de hoje e não é mais necessário esperar 70 anos para um povo se livrar de um sistema opressivo, ainda que o preço dessas aventuras continue sendo sempre elevado demais.
Fiquei em dívida com os leitores do Vespeiro esta semana que passei em trânsito por lugares sem conexão de internet. Mas televisão tinha. Assisti, se não me engano na segunda-feira, a uma reprise do programa Painel comandado por Willian Waack, que discutia com Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito da GV, Marco Antônio Villa, historiador, e José Álvaro Moisés, sociólogo, as raízes da epidemia de violência no Brasil a partir dos quase linchamentos de assaltantes ocorridos nos últimos dias e da morte do cinegrafista com a cabeça explodida por uma bomba dos black blocs, dois casos que se ligam pelo traço comum da crescente substituição das vias institucionais de processamento de desavenças pela ação direta da turba que “toma a justiça em suas próprias mãos” pelo Brasil afora.
Chegou-se a esboçar o arquétipo de um povo bipolar “com uma bola no pé e uma pedra na mão”; especulou-se em torno das raízes históricas da “ausência de legitimidade” da Justiça que se aplica entre nós e, por essa senda chegou-se, caso raro nas análises que a mídia tem preferido veicular, à constatação da completa ausência dos fundamentos essenciais da democracia no Brasil, com a igualdade perante a lei abrindo a lista dos ausentes.
Mas o alarme do cronômetro que escraviza a televisão e a torna obrigatoriamente tão rasa disparou justamente quando se constatava o “crescente divórcio entre as instituições e as ruas” que é, ao mesmo tempo, uma esperança e uma ameaça.
Esperança porque é um sinal salutar de tomada de consciência por uma parcela da população com paciência cada vez menor para esta empulhação que é a nossa vida institucional e política, fenômeno que se expressou com exatidão literal nas manifestações “autênticas” de junho de 2013.
Ameaça porque substituir instituições por ação direta, sobretudo quando todos sabem o que querem destruir mas não o que querem construir no lugar, é o caminho mais curto para o brejo das ditaduras populistas onde já chafurdam tantos de nossos vizinhos.
É para onde corremos o sério risco de sermos empurrados por essa associação clássica entre os babacas da “estética da violência” da esquerda playboy (antigamente dita “festiva”) e os trogloditas pagos, do tipo que rotineiramente se contrata para “decidir” eleições sindicais, manipulados pelos profissionais da demolição de instituições pela corrupção, agora alçada à nova categoria “ideológica” de arma “legítima” de conquista do poder que têm manipulado os primeiros.
Essa “promoção” da boa e velha roubalheira foi identificada pelos dois lados envolvidos no julgamento do Mensalão. Tanto o Ministério Público Federal quanto o Supremo viram na sistematização do suborno do Legislativo pelo PT um “atentado contra os fundamentos da Republica” visando anular qualquer controle desse poder sobre os atos do Executivo.
A cena dos ladrões flagrados e condenados erguendo punhos “de resistência” no ar nas portas das penitenciárias, seguidos das (supostas) mobilizações da militância para colher, entre os roubados, contribuições para reduzir as penas dos ladrões também têm inequivocamente esse sentido.
O outro ingrediente da receita são as duas formas de violência que toma as ruas: a controlada das manifestações de griffe que se seguiram às de junho, e a espontânea dos quase linchamentos das ultimas semanas que surgem como uma resposta exasperada à explosão geral dos números da criminalidade frente à falta de disposição do estado de enfrentar esse problema.
Eugênio Bucci, com a competência costumeira, volta a discutir hoje no Estado o lado “estético” e “cultural” que indiscutivelmente, concordo, se mistura aos quebra-quebras de agosto até hoje. Mas vale lembrar que a presença desse tipo de inocente útil da elite que ajuda muito a retardar a articulação das defesas da sociedade contra a ameaça real que esses movimentos encerram até que seja tarde demais, é uma constante histórica nos episódios do gênero onde sempre, excluído da regra o mundo saxônico, acabam por triunfar os profissionais.
O que ha de lastimavelmente diferente nesta reencenação tropical do fenômeno que chacoalhou as democracias do Norte nos anos 60, a que ele se refere no seu artigo, é a qualidade da “utopia” por traz de cada uma, transcorrido meio século de História assistida ao vivo como nunca tinha tido oportunidade de experimentar a geração que embarcou no que, naquela época dos primórdios da televisão, ainda podia ser visto como uma ilusão honesta.
Essa “ideologização” da corrupção posta ao lado da ideologização dos “justiçamentos” e até do assassinato a esmo com bombas detonadas em praças públicas daquela época - cujos agentes frequente e literalmente são as mesmas pessoas - corresponde perfeitamente ao abrandamento das sanguinárias ou até genocidas “ditaduras totalitárias do proletariado” do século 20 nas apenas brutais ditaduras populistas de hoje.
O século 21 não aceita mais a ideologização do sangue mas O Poder continua sendo O Poder e levando os que acreditam ter nascido para exercê-lo livres de qualquer limite aos extremos possíveis em cada momento histórico.
Estes consideram cada dado da equação com a mais fria objetividade e tratam apenas de colher cada grão de poder conquistado, seja como for. Naquela época assim como hoje a perversão do sentido do ato criminoso posto a serviço dessa caçada ao poder político vem muito mais de fora – dos intelectuais e da militância que apoiam as correntes que o praticam – do que de dentro do grupo dos seus executores.
Onde, lá atrás, pululavam os psicopatas mais interessados na volúpia de onipotência encerrada no ato de matar que na sua interpretação política, sistematicamente eliminados depois de vencida a parada final pelo beneficiário dos seus crimes, hoje atua a legião dos muito mais interessados no produto “em espécie” da roubalheira que no ganho de poder político que dela resulta para um terceiro.
Mas pairando por cima de ambos está, como sempre, a figura mais amoral e despida de limites entre todas, usando os demais até onde puderem servir aos seus propósitos e descartando-os sem nenhuma hesitação ou poesia assim que deixam de ser úteis.
Antigamente, depois de fuzilado o último “moderado” entre os quadros da “revolução”; hoje, depois de removido o último juiz ainda a serviço da lei, impõe-se a verdade sem máscara da concentração de todo o poder na pessoa do déspota, seguida da criminalização da oposição e da institucionalização do confisco – expressão que sempre soa melhor que roubalheira – do produto do trabalho alheio.
É o ponto em que se encontram os nossos vizinhos mais visitados e festejados pelo PT.
O que fica faltando na receita de hoje é a repressão brutal à criminalidade que explode como subproduto do aniquilamento da força da lei necessário à instalação do império do crime em que se apoia o novo esquema “revolucionário”, depois da tomada do poder.
Antigamente ela vinha junto com O Terror aplicado livremente para consolidar essas conquistas. Hoje esse recurso está banido pela rejeição universal à matança como recurso "político", o que resulta em que a criminalidade insuflada durante o período de desmontagem das instituições pela arma da corrupção se torna crônica, vira uma herança maldita dos próprios regimes que a insuflaram e acaba se transformando num componente decisivo para apressar a morte por overdose dos traficantes dessa droga.
Nós ainda estamos no meio do caminho para esse tipo de desastre, percepção que faz aumentar todos os dias a inquietação da sociedade brasileira. Ha uma insatisfação crescente de uma parte considerável da nacionalidade com o estado de coisas a que nos levou, por enquanto, essa ideologização da corrupção, que está saindo rapidamente do estado de latência, o que nos põe diante de riscos e oportunidades.
Por que esses insatisfeitos não são capazes de expressar o que sentem de forma propositiva e unir-se em torno de um objetivo definido é algo que está relacionado ao fato de - da escola à imprensa - o país estar preso a um gabarito de interpretação da realidade social e política dos meados do século 19 que não faz mais sentido nenhum no mundo de hoje, fenômeno que deita raízes na herança jesuíta de que nunca nos livramos.
Mas este é o assunto do artigo de amanhã.
20 de fevereiro de 2014
vespeiro
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