No dia de Natal, nada aconteceu. A noite seguinte teve fogo e depredação: em Humaitá, às margens do Rio Madeira e da Transamazônica, 3 mil pessoas incendiaram a sede da Funai e da Casa do Índio, num introito para ações de um grupo mais exaltado que seguiu em frente, destruindo barcos oficiais e postos ilegais de pedágio, antes de invadir a Terra Indígena Tenharim.
O núcleo urbano amazônico, surgido de uma missão jesuítica e elevado ao estatuto de município no ciclo da borracha, converte-se agora em símbolo do triunfo da política indígena do lulismo, que semeia o rancor e a violência. O general Ubiratan Poty, comandante da brigada de Porto Velho, recusou-se a classificar os eventos como um conflito étnico. Infelizmente, ele está errado.
Sede da Funai em Humaitá (AM)
Na sequência, o desaparecimento na rodovia de um técnico da Eletrobrás, um professor e um comerciante foi interpretado pelos moradores como sequestro por vingança. O copo de cólera transbordou logo depois, quando se avistaram 140 índios circulando na cidade.
A narrativa forma uma aula completa sobre a pedagogia do multiculturalismo: índios e não índios aprenderam a se identificar por oposição uns aos outros, demarcaram nitidamente seus territórios e deflagraram uma guerra de guerrilha.
Humaitá é o pico emerso de uma guerra fragmentária de dimensões assustadoras. No início de novembro, três índios foram emboscados e mortos no sul da Bahia, em meio a desavenças sobre a delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.
Os assassinatos seguiram-se a invasões, pelos índios, de mais de duas centenas de propriedades rurais na região. “É um trauma muito grande”, diagnosticou o governador Jaques Wagner, aproveitando para desfazer uma lenda recorrente: “Ali não se trata de grandes latifundiários; são várias famílias que estão na terra há até 80 anos, plantando e sobrevivendo.”
Na pequena Buerarema, em protestos contra a eventual homologação da terra indígena, populares incendiaram veículos e depredaram prédios públicos. Em Ilhéus, professores do Instituto Federal da Bahia que militam pela homologação converteram-se em alvos de agressões.
Os conflitos fundiários ligados à demarcação de terras indígenas transbordaram há muito o âmbito local. Enquanto as violências se espalhavam pelo sul da Bahia, Lula foi recebido no Mato Grosso do Sul com protestos de produtores rurais cujas fazendas sofreram invasões.
O presidente de facto prometeu reunir-se com a presidente de direito “para dizer que o governo tem que resolver isso antes que aconteça uma desgraça”. Lula usou a palavra “guerra”: “Não esperar a guerra acontecer para resolver.”
Nos próximos dias, finalmente, será divulgada a avaliação do valor de indenização das propriedades abrangidas pela Terra Indígena Buriti. Paralelamente, porém, posseiros e trabalhadores rurais voltaram a invadir áreas da Terra Indígena Marãiwatsede, de onde haviam sido retirados por forças federais.
“Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada. As sementes da violência não se encontram na extensão das terras demarcadas, mas na férrea lógica da separação étnica que orienta a política indígena e se expressa no termo oficial “desintrusão”.
A palavra, usada para descrever a remoção de todos os não índios das terras homologadas, concentra a noção multiculturalista de que posseiros e produtores rurais estabelecidos previamente em terras definidas como indígenas são “intrusos”. O conflito étnico espreita atrás dessa ideia, cultivada por missionários e ONGs internacionais — e irresponsavelmente adotada pelo lulismo.
O modelo de terras indígenas exclusivas, hermeticamente lacradas, tem sentido para os casos de grupos isolados que conservam modos de vida tradicionais. Mas a sua aplicação generalizada reflete apenas a utopia multiculturalista da restauração de “povos originais” e, na prática, serve unicamente aos interesses das ONGs e das entidades religiosas que conseguiram capturar a política indígena oficial.
O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas” para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena. Eles certamente precisam de terras — mas, sobretudo, necessitam de postos de saúde e escolas públicas. A política da segregação étnica é, de fato, uma forma cruel de negação de direitos sociais básicos.
O lulismo não inventou a terceirização da política indígena para as ONGs multiculturalistas e os missionários pós-modernos, mas a conduziu até suas consequências extremas. Hoje, no Brasil profundo, colhem-se os frutos dessa modalidade sui generis de privatização das políticas públicas.
Depoimentos de habitantes de Humaitá evidenciam uma ruptura crucial. Marlene Sousa, servidora pública, disse o seguinte: “Temos índio aqui que é professor, a gente os respeita como seres humanos, mas como podemos confiar neles depois do que aconteceu? Revoltada, a população é capaz de tudo”.
Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles”.
O “nosso mundo” e o “mundo deles”: os fanáticos do multiculturalismo nunca conseguirão reinventar os “povos da floresta”, mas reacendem a mentalidade do colono desbravador entre os não índios rotulados como “intrusos”. O perigo está aí.
03 de janeiro de 2014
Demétrio Magnoli é sociólogo. O Globo
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